Gravuras das cidades de Tânger, Safim, Ceuta, Arzila e Salé em 1572 in Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, Biblioteca Nacional de Portugal
“Ficávamos nas praças de Marrocos como a bordo das nossas naus; porém as naus iam, vinham, livremente pelos mares, multiplicando a força, distribuindo o castigo; ao passo que as praças de África eram pontões imóveis, ancorados, constantemente batidos pelas vagas da mourama tempestuosa”. (MARTINS, 1947, p. 258-259)
O facto de as Praças de Marrocos se encontrarem isoladas e cercadas por um ambiente hostil, dependendo totalmente dos abastecimentos da metrópole, levou a que os portugueses introduzissem nas suas estruturas alguns elementos singulares, com o objectivo de as adaptar à nova realidade e assegurar a sua gestão e controlo efectivo. O bloqueio imposto pelo Reino de Fez e o desvio das rotas das caravanas para outros portos, acompanhada da fuga de muitos comerciantes estrangeiros aí estabelecidos, caso dos genoveses, provocou o seu declínio comercial.
Desenho da cidade e fortaleza de Ceuta de 1643. Autor desconhecido, Arquivo General de Simancas
A política de ocupação das cidades implementada por Portugal, expulsando os seus habitantes para fora de portas, teve desde logo como consequência a herança de estruturas urbanas demasiado grandes e ingovernáveis. Só no caso de Ceuta, conforme já foi referido, a cidade vê a sua população num só dia reduzida de 30.000 habitantes para uma guarnição de 2.500 homens, acontecendo um processo semelhante com as restantes cidades ocupadas. Conforme referiu Zurara na crónica da sua conquista, “já passavam de sete horas e meia depois do meio-dia, quando a cidade foi de todo livre dos mouros”. (ZURARA, [1450] 1915, p. 234)
Para solucionar este problema, os portugueses reduziam a área da cidade conquistada através de um processo com base nos atalhos, tramos de muralha interiores ao perímetro muralhado, que o seccionavam, dividindo a cidade em duas partes. Criava-se assim a Vila Nova e a Vila Velha. A Vila Nova, onde os portugueses se instalavam, era invariavelmente de menor dimensão e abarcava a área mais próxima do mar, onde era possível realizar os necessários abastecimentos. As construções e muralha da Vila Velha eram progressivamente demolidas, já que, sem habitantes, constituíam um perigo onde se produziam possíveis emboscadas, e a área acabava por se transformar em campos de cultivo, pomares e pastagens para o gado. Assim foi em Ceuta, Arzila, Tânger, Safim e Azamor. Nalguns casos, como em Azamor, a muralha da Vila Velha não era demolida, mantendo-se uma área de agricultura de subsistência murada.
O processo de “atalhamento” de Arzila. Fonte Jorge Correia
O processo de atalhamento das cidades inseria-se num processo mais vasto que era o da modernização e reforço das suas defesas e posteriormente da sua estruturação, com vista a serem adaptadas ao modo de vida europeu. A construção dos atalhos tinha assim como objectivo criar um novo pano de defesa exterior e não uma simples divisória interior, pelo que a sua construção era realizada de forma cuidadosa e procurando corrigir debilidades encontradas na cerca original.
O atalho de Arzila, com o seu fosso, numa imagem de Adolfo Guevara de 1940
Planta de Arzila de Adolfo Guevara, 1940
O atalhamento de Arzila corta a cidade em duas no sentido paralelo ao mar, com o objectivo de garantir o controlo português sobre a frente ribeirinha e de conferir ao perímetro muralhado maior regularidade. Como refere Jorge Correia, “os portugueses optaram pela realização de um atalho que veio cortar a cidade praticamente em duas pates iguais, deixando de fora a metade mais afastada do mar e que se espraiava pela planície. Arzila portuguesa viu-se reduzida a 45% da área islâmica herdada, preservando a faixa litoral imprescindível à estratégia de manutenção da praça. Um novo muro, de pedra e argila, traçava uma secante pelos baluartes que hoje se denominam Tambalalão e Santa Cruz”. (CORREIA, 2008, p. 181)
Sobre Tânger escreveu D. Fernando de Meneses na sua crónica que, ainda no reinado de D. Afonso V, foi tomada a decisão de atalhar a cidade _ “parecendo-lhe depois, que a cidade era grande, e necessitava de igual presídio para sua defesa, a mandou cortar, e reduzir a mil vizinhos, tendo antes mais de quatro mil, que isto fazem as mudanças do tempo, e dos impérios.” (MENESES, 1732, p. 34)
O atalho de Tânger
No caso de Tânger a área muralhada é não só reduzida e o perímetro regularizado, com a construção de dois tramos de muralha em cotovelo, como situações de debilidade detectadas durante a conquista da cidade foram solucionadas, implantando-se os atalhos em situações que tiraram partido da topografia do terreno, no cimo de taludes existentes, ganhado supremacia em relação à área exterior próxima. No entanto, recuo da muralha deixou desprotegidos alguns locais altos extramuros, “correspondendo (…) a um importante limite defensivo que seguia uma curva de nível relativamente constante e que seria mais tarde utilizado por portugueses e ingleses para marcarem o território com atalaias ou fortins avançados no campo exterior à cidade”. (CORREIA, 2008, p. 213)
Em Azamor, inicia-se a construção do atalho no ano de 1517, ligando o Baluarte de S. Cristóvão ao Baluarte do Rio, construído em formigão, ou seja, na chamada taipa militar, uma técnica de utilização da taipa estabilizada com cal, “com 1,70 metros de largura e cerca de 4,5 metros de altura fora as ameias” (DIAS, 2004, p. 129). A construção do atalho, dividindo a Vila Nova da Vila Velha, já estava preconizada desde a tomada da cidade, e as construções da Vila Velha foram progressivamente demolidas, já que no Regimento da obra do muro e atalho da cidade de Azamor consta a indicação da construção de uma porta para o campo, sendo os seus terrenos transformados em hortas e pomares.
Projecto da Couraça de Alcácer Ceguer supostamente realizado por Boitaca em 1502
Um outro elemento fundamental das fortificações portuguesas eram as couraças, tramos de muralha perpendiculares à cintura principal, que se prolongavam até ao mar. As couraças seriam um elemento constante e marcante das fortificações portuguesas em Marrocos, garantindo não só que as manobras de abastecimento se realizassem em segurança, como assegurando o próprio controlo da praia enquanto território vital à sua sobrevivência. Eram assim postos avançados de artilharia sobre o mar e corredores fortificados para cargas e descargas.
“A palavra couraça significa, em termos gerais, uma muralha perpendicular ao muro de uma fortificação, realizada para proteger o abastecimento. Deriva do árabe qawraya, que sabemos se empregava pelo menos desde o século XIII (…) as couraças, como assinala Huici Miranda, protegiam um caminho até um poço ou, como nos diz Robert Ricard, a um rio ou inclusivamente ao mar.” (GOZALBES CRAVIOTO, 1980, p. 365)
Particularmente importantes foram as couraças e couracetas de Tânger, destinadas a proteger a aproximação de navios ao porto, as três couraças de Arzila, que garantiam o controlo da toda a frente ribeirinha da cidade, Couraça/Baluarte da Couraça, Baluarte de S. Francisco e Baluarte da Pata da Aranha, ou a impressionante couraça de Alcácer-Ceguer, projectada por Diogo Boitaca em 1502, um autêntico corredor fortificado com 110 metros de extensão ligando o Castelo à Praia.
A “Couraça da Banda de Tetuão” em Ceuta
Em Ceuta ficaria famosa a Couraça da Ribeira ou da Banda de Tetuão, situada no chamado Mar de Barbaçote. Reconstruída por Francisco Danzilho nos meados do século XVI, fora edificada antes da tomada da cidade pelos portugueses, entre 1331 e 1351, denominando-se Castelo da Água, conforme refere um texto de Ibn Marzuk citado por Gozalbes Cravioto:
“O Castelo da água (Burj Al-Ma’) que edificou mar adentro (o sultão Abu l-Hasan), no meio das ondas, no Mar de Bassul, no litoral de Ceuta. Eu assisti à sua construção. Toda a gente concordava que era impossível edificá-lo ali. Transportaram-se rochas do tamanho de penhascos e pedras que era impossível mover sem cálculos (handasa) e medições e sem a ajuda de roldanas (‘ayal): sobre elas foram deitadas outras iguais, até que se formou uma ilhota no meio do mar e sobre ele fez-se levantar o imponente castelo que ali é tão famoso. Ordenou logo (o sultão Abu l-Hasan) fazer-se uma ponte que ia desde a costa até este castelo, pela qual podiam circular os animais e comunicava com a terra firme.” (GOZALBES CRAVIOTO, 1980, pp. 371-372)
Este castelo é a famosa Torre de Hercules referenciada nos textos portugueses.
O Terreiro de Arzila
Um elemento de composição urbana fundamental para as praças de Marrocos era o chamado Terreiro, uma grande praça que acolhesse as principais cerimónias e eventos comunitários. Jorge Correia refere-se assim à criação do Terreiro de Ceuta:
“Ao conquistar a cidade, os portugueses aproveitaram todos os elementos urbanos disponíveis mas necessitavam de uma urbe mais exteriorizada que reflectisse as práticas sociais que identificavam nas vilas e cidades da Metrópole. A abertura de uma grande praça urgia.” (CORREIA, 2008, p. 107)
Mas guerra nas praças portuguesas em Marrocos fazia-se sobretudo nos terrenos que as circundavam, já que os seus habitantes, apesar de confinados ao perímetro muralhado enquanto reduto seguro, precisavam de sair dele todos os dias para efectuar tarefas fundamentais à sua subsistência. A recolha de lenha era uma delas, o desenvolvimento de uma agricultura de carácter precário e de produção extremamente limitada era outra, a garantia de pasto para as poucas cabeças de gado outra ainda. Sem essas actividades a vida nas praças seria muito mais dura, não só porque permitiam que a dieta dos seus habitantes não se limitasse ao biscoito e carne seca, mas fosse também composta por alguns frescos, mas também pelo próprio aspecto psicológico que tinha a saída diária fora de portas, que atenuava a sensação de encarceramento que a vida nas praças originava. Para garantir que essas tarefas se realizavam com um mínimo de segurança e eficiência, os portugueses desenvolveram sistemas defensivos engenhosos, sujeitos a procedimentos rotineiros rígidos, estruturando um modelo de defesa e vigilância capaz de garantir a segurança dos trabalhadores agrícolas e da própria praça, que se desguarnecia momentaneamente durante os períodos em que as suas portas ficavam abertas.
Gravura de Arzila no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572. É interessante observar nesta gravura a área do Campo de Arzila, encerrada pelas elevações circundantes, o Facho, ao fundo, no centro da imagem, e as duas colunas, que, alinhadas, serviam para guiar os navios que aportavam à cidade
Essa preocupação está patente no Diário Tangerino de Afonso Fernandes, referindo o seu autor, Benjamim N. Teensma, que “enquanto os homens andavam dispersos pelo campo, eram vulneráveis pelo inimigo, porque o terreno acidentado e por partes coberto de densa vegetação proporcionava, apesar de toda a vigilância, muitos esconderijos a infiltrantes que tivessem chegado de noite com a incumbência de espalhar o pânico, causar estragos, e eliminar tantos adversários quanto possíveis” (TEENSMA, 2008, p. 28). E cita Braz Fernandes Couto: “Nunca ninguém perdeo fazendo as cousas sobre seguro (…) para huma cousa de tanta importância, em que se arrisca huma cidade, são necessárias todas as prevençoens”. (TEENSMA, 2008, p. 30)
Afonso Fernandes fornece pistas valiosas sobre esta estrutura defensiva exterior de Tânger, mas é na obra de Adolfo Guevara Arcila durante la ocupación portuguesa, baseada nos escritos de Bernardo Rodrigues, morador nessa praça, que melhor se compreende a eficácia desta simbiose entre elementos precários e procedimentos rotineiros.
O sistema defensivo do campo exterior de Arzila. Fonte Adolfo Guevara
O campo exterior de Arzila, entendido como os terrenos circundantes à praça onde se desenvolviam actividades agrícolas e pecuárias diárias, era organizado de forma racional e sistematizada, tirando o máximo partido da sua área, hierarquizada, distribuindo as funções de acordo com a sua importância e necessidades de mão-de-obra, e militarizada, criando obstáculos a possíveis ataques e permitindo a qualquer momento a sua evacuação em segurança.
Abarcava uma área de cerca de 130 hectares, contra os apenas os 8 hectares da área muralhada da cidade, tinha um perímetro de cerca de 6 quilómetros, dos quais 3,5 eram cercados por valados ou valos, muros de pedra com cerca de 1,7 metros de altura. Os valados eram como que uma segunda muralha, de carácter mais rudimentar, com a função de evitar ataques repentinos com utilização de cavalaria, que pusessem em causa as manobras de retirada para o interior da cidade. Existiam dois valados principais _ um ao longo da praia, e outro na frente de contacto com o interior do território, a Nascente, ligando as 3 atalaias principais _ o Facho, a mãe de todas as atalaias, o Outeiro de Fernão da Silva e o Outeiro de Pero Cão. Dos lados Norte e Sul o campo era protegido naturalmente por dois cursos de água, o Rio Doce ou Oued Helu e uma ribeira cuja designação não consta das fontes consultadas. O Facho era uma torre construída e tinha a função de centralizar toda a informação emanada dos terrenos circundantes, nomeadamente das chamadas atalaias curtas, que adiante se referem, e enviá-la para a Torre de Menagem da praça, a partir da qual eram dados os alertas.
O Facho de Arzila, depósito de água em meados do século passado
No campo, as hortas ocupavam o lugar mais próximo das muralhas da cidade, pelo facto de exigirem a maior parte da mão-de-obra e de guardarem os alimentos mais valiosos. Ao longo do fosso do atalho, entre os Baluartes de Tambalalão e de Santa Cruz, ficava o Terreiro das Hortas, com destaque para a Horta do Conde, governador da praça. Entre esse Terreiro das Hortas e o Facho situavam-se outras hortas, estruturadas através de um caminho de ligação e quatro caminhos perpendiculares, delimitadas por muros de pedra. Para fechar esses caminhos em caso de ataque, sobretudo com cavalaria, eram colocadas tranqueiras ou paliçadas, estruturas de madeira amovíveis que funcionavam como portas.
“Este sistema de barricadas e paliçadas impediam todas as manobras da cavalaria marroquina, que periodicamente corria a vila, tendo que avançar por estreitas ruelas, derrubando troços de muros, em diversos sítios, a fim de poder evoluir com certo desafogo.” (GUEVARA, 1940, p. 31)
Nas áreas mais afastadas do campo ficavam os pomares e o laranjal, onde também se cultivavam cereais e a vinha, e as pastagens para o gado.
As “atalaias curtas” de Arzila. Fonte Adolfo Guevara
A vida nas praças estava intimamente relacionada com a própria actividade desenvolvida no campo exterior e seguia um procedimento rotineiro diário. Às primeiras horas do dia saíam os escutas ou atalhadores, que examinavam cuidadosamente todo o campo, procurando infiltrados que se tivessem escondido durante a noite para emboscar os lavradores. Um testemunho do século XVIII descreve estes perigos na praça de Mazagão:
“Todo o campo que se avista da fortaleza é plano, só para o lado direito fica um pequeno outeirinho: os mouros que vêm, não a investir mas sim a roubar, se escondem junto dele, até que chegue a noite para, no silêncio dela, virem a meter-se nas hortas. A gente que da praça sai a este costumado e preciso exercício de conduzir lenha vai observando todos os sítios e vendo se ficaram alguns escondidos; porque são tais os mouros que, quando não têm parte cómoda para as suas emboscadas, cavam no chão poços estreitos da altura de uma braça e neles se escondem, até que os do presídio, que vão a cortar a lenha ao mato, passem adiante; então, quando mais ocupados os vêm no exercício de cortar e carregar, de dentro do mato lhes saem magotes deles, que os obrigam a montar, e, tomando as armas, a porem-se em defesa, vindo sempre retirando-se para junto da praça; os que ficaram metidos nas covas e poços, que têm feito, lhes saem pelas costas com que, apanhando-os no meio, se lhes faz dificultosa sem que seja por meio de muito sangue. Este é o contínuo exercício dos habitantes de Mazagão, de que são tantas as batalhas como os dias; porque apenas haverá um em que não haja um choque, uma escaramuça, uma emboscada, um assalto, uma batalha…” (LOPES, [1937] 1989, pp. 42-43)
A Torre de Menagem do Castelo de Arzila
Após a inspecção ao campo feita pelos atalhadores, saíam os atalaias, que ocupavam as suas posições no cimo de determinadas colinas. Com eles iam os costas, que lhes davam protecção, posicionando-se na base das mesmas colinas. Se o campo estivesse seguro, os atalaias informavam o Facho dessa mesma situação e o facheiro içava uma cesta forrada com pano no mastro situado no cimo da torre. O sinal era recebido na Torre de Menagem do Castelo e o governador dava então ordem para os trabalhos no campo se iniciarem através de 5 badaladas do sino. Ao mínimo sinal de perigo, o facho era arreado em sinal de alerta. Da Torre de Menagem partia a ordem de evacuação do campo exterior, comunicada através de tiros de canhão.
A eficácia do sistema de alerta baseado nas atalaias foi comprovada pelo vice-rei de Granada, quando fez escala em Arzila, quando se encontrar em perseguição do corsário Khayr Ad-Din Barbarossa. Nessa ocasião, o capitão de Arzila D. João Coutinho fez-lhe uma demonstração do estado de preparação da sua praça para qualquer eventualidade. “Quando andavam na visita do campo, o conde mandou derrubar o facho, que estava na atalaia do Facho, e logo a torre do sino deu a rebate e em momentos viu junto de si 250 de cavalo, bem armados, o que o marquês muito admirou e louvou.” (LOPES, [1937] 1989, p. 48)
Morabito no campo junto a Alcácer Quibir
Nos períodos das colheitas a área de vigilância em torno de Arzila era ampliada para um raio de 8 a 10 quilómetros, somando-se às atalaias curtas as atalaias largas, o que aumentava significativamente o tempo de alerta disponível. Activadas as atalaias largas, e ampliada a área do campo exterior da praça, organizavam-se caçadas aos javalis, coelhos, antílopes e gazelas. Frequentemente organizavam-se batidas aos leões e chacais, responsáveis por várias mortes de lavradores e cabeças de gado, como refere Bernardo Rodrigues:
“Neste ano, 1530 vieram tantos leões ao nosso campo depois de esgotarem os javalis e outros animais. Vinham ao redor da vila buscar que comer, e afirmo que matámos à lançada 26 leões, fora outros que matámos com espingardas.” (RODRIGUES, [156-] 1919, p. 181)
Apesar de efémera e precária, a estrutura defensiva que os portugueses implantaram no campo de Arzila acabou por perdurar em elementos do traçado urbano actual, como vias e limites de propriedades.
O Baluarte do Caranguejo em Tânger
Nas outras praças existiam sistemas de estruturação defensiva do campo exterior semelhantes aos de Arzila. O facto é comprovado no “Diário Tangerino de Afonso Fernandes:
“Para proteger-se dos inesperados ataques das tropas dos alcaides marroquinos, e também das tribos armadas dos Berberes da região, os Tangerinos tinham construído diante das muralhas da cidade uma faixa defensiva semicircular composta de tranqueiras, e diante delas um parapeito de pedras amontoadas, o chamado “valo”. (…) Entre o valo e as muralhas da cidade cultivavam as suas hortas, que produziam algumas frutas, legumes e trigo”. (TEENSMA, 2008, p. 27)
Em redor de Tânger existiam inúmeras tranqueiras, cada uma com o seu nome, como a Tranqueira dos Pomares, a Tranqueira das Canas, a Tranqueira Nova, a Tranqueira de Angera, a Tranqueira de Benamenim, a Tranqueira do Verde, a Tranqueira dos Três Paus, a Tranqueira da Lagem ou a Tranqueirinha. Este sistema defensivo avançado, com recurso às tranqueiras e ao valo, não seria estranho à antiga cerca desactivada e construções que originalmente protegia, já que a própria configuração semicircular do chamado campo exterior o pode indiciar. A construção dos atalhos pelos portugueses terá deixado vazio um território semi-urbano que pode ter cumprido esse papel fundamental no processo de sobrevivência da população, garantindo um mínimo de bens de primeira necessidade. Nesta perspectiva, o material demolido da anterior cerca, então desactivada, e dos edifícios que abrigava, não só teria sido utilizado para a construção dos atalhos, como também do valo.
Planta de Mazagão de 1802 de Ignacio António da Silva . Biblioteca Nacional de Portugal
No caso de Mazagão, a Planta de 1802 de Ignacio António da Silva é ilustrativa da disposição dos talhões criados para a agricultura e das defesas precárias implantadas no terreno para a sua defesa e vigilância.
Em Azamor, são demolidas as construções da Vila Velha, no seguimento da construção do muro de “atalho”, mas não a muralha que a rodeava, pelo que a área de hortas e pomares ficou naturalmente protegida. Refere pedro Dias a este respeito que “seguir-se-ia a destruição da vila velha, cujo terreno seria destinado a hortas e pomares. Os materiais das casas que fossem destruídas seriam aproveitados, e dar-se-ia uma indemnização aos seus proprietários.” (DIAS, 2004, p. 133)
No caso de Ceuta, a existência de uma muralha cercando a Medina e separando-a dos diversos arrabaldes, consumou o atalhamento natural da cidade portuguesa sem recurso a obras. Os portugueses instalam-se na Medina e arrasam os arrabaldes, que progressivamente se vão transformando em campos de cultivo e pomares. “Em nenhum documento coevo consultado nos aparece a denominação “atalho” para esta operação em Ceuta, mas implicitamente se deduz o seu processo. Tratou-se de um equilíbrio racional e pragmático de resolução de uma equação entre espaço e meios disponíveis.” (CORREIA, 2008, p. 95)
Gravura de Ceuta no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
Na gravura de Braun e Hogenberg surge uma imagem da Ceuta do século XVI com as suas muralhas representadas de forma esclarecedora. A Medina bem fortificada com o seu Castelo e a sua Couraça em perfeitas condições de conservação, os arrabaldes despovoados, abandonados, com as suas muralhas parcialmente derrubadas. Aqui, não só as antigas muralhas dos arrabaldes despovoados defendiam as áreas de cultivo, como as mesmas se situavam na Península Almina, inacessíveis a partir do exterior do território.
Em Safim existiam à data da conquista da cidade duas áreas livres intramuros que são excluídas do perímetro muralhado durante o processo de atalhamento. Não temos referências em relação a um seu aproveitamento como áreas de cultivo, mas Jorge Correia confirma que os tramos de muralha dessas áreas foram demolidos _ “os velhos muros abandonados foram sendo progressivamente demolidos num ritmo lento, reféns da negligência portuguesa e da forma como o calendário inimigo ditava a vigilância na praça”. (CORREIA, 2008, p. 271)
Os campos da Duquela
Todo este sistema defensivo exterior era complementado com um outro, ofensivo ou preventivo, baseado na actividade dos almogávares, força de intervenção rápida que funcionava como uma espécie de contra-guerrilha.
“É a guerra de surpresas e de ciladas, aproveitando os acidentes do terreno ou a escuridão da noite.” (LOPES, [1937] 1989, p. 43)
Os almogávares eram uma força inspirada nos corpos militares criados pelas coroas de Aragão, Valencia, Castela e Portugal durante a conquista cristã da Península, com o mesmo nome, composta por indivíduos recrutados entre os camponeses, pastores e lenhadores das zonas de fronteira. O termo vem do Árabe Al-mighuar (pl. Al-maghauir), que significa corajoso. Os almogávares portugueses da guerra de Marrocos eram uma força de elite, composta pelos “mais moços e briosos” (TEENSMA, 2008, p. 37), que tinha por missão fazer incursões em território inimigo, destruindo colheitas, roubando gado e fazendo cativos, com o objectivo de pacificar as populações ou afastá-las para áreas mais remotas, para além de combater os mujahidin ao serviço do rei de Fez. As suas acções tinham o nome de almogavérias, entradas ou correrias, e destinavam-se sobretudo a evitar que a partir das aldeias vizinhas às praças surgissem ataques conta as mesmas. Eram comandados por um almocadém, do Árabe al-muqqadam, que significa o que precede, o que vai à frente.
Principais correrias referenciadas nos escritos de Bernardo Rodrigues e toponímia utilizada pelos portugueses. Fonte Adolfo Guevara
David Lopes escreve o seguinte sobre os almogávares: “Para encaminhar esta gente nas corridas dos capitães ou nas almogavérias havia guias que bem conheciam os caminhos; esses guias chamavam-se almocadéns, que eram, em regra, mouros do campo convertidos ao cristianismo, isto é, mouriscos. Eram pessoas de toda a confiança dos capitães, porque deles dependia a vida da gente. Alguns tornaram-se notáveis e os seus nomes figuram nas crónicas da época. Por exemplo: Diogo Lopes de Safim, de quem muito fala Damião de Góis nas façanhas de Nuno de Ataíde, ou Pero de Menezes em Arzila, como refere Bernardo Rodrigues em muitas partes da sua obra.” (LOPES, [1937] 1989, p. 43)
Afonso Fernandes, no seu Diário Tangerino refere também Amete Benalle (Ahmed Ben Ali) como um valoroso almocadém de Tânger.
Uma passagem da obra de David Lopes mostra bem o clima de guerra permanente que se vivia nas praças de Marrocos: “Assim, pois as praças viviam na obsessão da guerra. (…) O capitão tinha sempre o seu cavalo selado. Dado o rebate ele não tinha senão de vestir uma saia de malha e montar a cavalo, para acudir onde fosse necessário. Na fronteira de Safim, nos aduares dos mouros, desde a meia-noite, os cavalos ficavam selados para o mesmo fim.” (LOPES, [1937] 1989, p. 48)
O Castelo de Aguz na Praia de Souira Qadima
A singularidade da presença portuguesa fica também marcada no próprio processo de construção de fortalezas, já que era nesse período que a intervenção era mais vulnerável aos ataques inimigos, como aliás ficou demonstrado nas tentativas falhadas de construção das fortalezas da Graciosa e de S. João da Mamora.
Os construtores portugueses desenvolvem então um processo de construção de fortalezas extremamente racional, seguro e expedito, com base em projectos-tipo, na pré-fabricação de materiais e na utilização de uma estrutura pré-fabricada em madeira para apoio, situação que permitia uma grande racionalização de meios. O projecto-tipo tinha por base uma planta quadrangular e torreões circulares nos seus vértices, fossem quatro ou dois, colocados de forma a cobrir os ângulos de tiro rasantes à muralha e a proteger a porta de entrada.
Por outro lado, os materiais eram transportados de Portugal, num processo de pré-fabricação, o que acelerava o processo construtivo e evitava riscos desnecessários com a eventual fabricação no local. Pedras de cantaria eram transportadas já talhadas, os elementos de madeira prontos a utilizar, a cal, os pregos, etc. Finalmente, a construção definitiva era precedida da montagem no sítio de uma estrutura pré-fabricada de madeira, para abrigo dos operários e das defesas, em torno da qual se construía a estrutura definitiva. No final, a estrutura de madeira era desmontada.
A utilização de estruturas defensivas provisórias ou castelos de madeira era aliás comum não só para a construção de fortalezas, mas também em situações de concentração de tropas para operações militares como cercos, como sucedeu na tentativa falhada para tomar Tânger em 1437 e na conquista de Arzila de 1471, tendo a designação de palanques.
Castelo de Aguz por A. Luquet, 1941, Serviços Históricos de Marrocos
Um exemplo paradigmático deste processo construtivo é o da construção do Castelo de Aguz em Souira Qadima, que deu origem à famosa Lenda de Aguz, segundo a qual os portugueses teriam erguido a fortaleza numa só noite com o auxílio dos anjos.
Esta construção inicial de uma estrutura provisória precedendo a construção definitiva é confirmada por Rafael Moreira na descrição da construção do Castelo de Mazagão em 1514, referindo que menos de um mês após a visita do Duque de Bragança, “D. Manuel já enviava um superintendente com materiais para as obras – 40 vigas, 440 tábuas e 17 mil pregos – o que sugere uma primeira veloz construção de madeira efémera” (MOREIRA, 2001, p. 32). E afirma que no ano seguinte a coroa portuguesa decide-se por uma fortificação mais consistente e inicia-se a construção de uma fortaleza, “em pedra, cal e tijolos vindos de Portugal”, obra a cargo dos irmãos Arruda, fortaleza que fica pronta em menos de um ano e que é denominada “Castelo Real de S. Jorge”. (MOREIRA, 2001, p. 32)
A Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer, construída em 1505 pelo comerciante João Lopes Sequeira, também seguiu esse mesmo processo construtivo, como relata Pierre Cenival:
“Ali assentou e armou ali um castelo de pau que levava já ordenado e feito; pôs-lhe artilharia e fez logo ao redor do castelo outro muito forte de pedra e cal, em que se meteu a fonte dentro, e com artilharia defendia aos mouros que lhe não impedissem a obra.” (CENIVAL, 1934, obra citada)