A guerra em Marrocos travava-se sobretudo nos campos e aldeias em redor das praças-fortes, em ataques surpresa contra os possíveis focos de ameaça à segurança dos portugueses. Rodeadas de inimigos, as praças encontravam-se isoladas e dependiam da metrópole ao nível do abastecimento de víveres. Apesar de Portugal fazer esforços para celebrar acordos com os chamados mouros de pazes que habitavam as áreas circundantes, assegurando um clima de paz e a possibilidade de garantir alguma logística local, a verdade é que, mesmo com tais acordos em vigor, vivia-se num clima de guerra permanente.
Os portugueses criaram uma força de intervenção rápida, uma força de elite em permanente actividade, chamada almogávares, que fazia razias nos campos vizinhos, destruindo colheitas, roubando gado e fazendo cativos, com o objectivo de prevenir eventuais ataques, pacificar as populações ou afastá-las para áreas mais remotas.
A guerra em torno das praças fazia-se de almogavérias, entradas ou correrias. “É a guerra de surpresas e de ciladas, aproveitando os acidentes do terreno ou a escuridão da noite.” (LOPES, [1937] 1989, p. 43)
Passagem sob o Palácio Raissouni em Arzila
O primeiro acordo entre portugueses e mouros só se firma após a conquista de Arzila em 1471 e pelo facto de o seu governador derrotado, Mulay As-Said Ash-Sheikh, se encontrar em guerra aberta com o sultão de Fez, não querendo manter abertas as hostilidades em duas frentes. Esse acordo incluía a troca das duas mulheres suas aprisionadas pelos portugueses pelas ossadas do Infante Santo, e o envio do seu filho para Lisboa, para aprender a língua e os costumes portugueses. Por esse motivo o filho de Mulay Ash-Sheikh ficou conhecido em Marrocos como L-Bartqiz, o Português, ou Mohammed Al-Burtughali, que curiosamente viria a ser o grande inimigo de Portugal após ser proclamado sultão de Fez.
O acordo não só previa a posse de Arzila e das outras praças por Portugal (Ceuta, Alcácer Ceguer e Tânger), mas incluía também “os lugares e aldeias do campo ou termo dos mesmos”. Apesar da criação desta área de mouros de pazes no “país Jebala”, a verdade é que o acordo foi constantemente violado, porque o próprio tratado de paz assim o permitia _ “…os lugares murados das duas partes, que eram da parte dos mouros de Alcácer Quibir, Tetuão e Xexuão, poderiam continuar a fazer-se guerra, sem quebra do tratado”. (LOPES, [1937] 1989, p. 26)
Esta cláusula do acordo, apesar de parecer absurda, justificava-se porque Mulay Ash-Sheikh não controlava os alcaides dessas cidades, mouriscos expulsos da Península, que faziam da guerra aos portugueses a sua principal actividade. É o caso de Sidi Ali El-Mandari (o Almandarim das crónicas portuguesas), alcaide de Tetuan, e Mulay Ali Berrechid (conhecido pelos portugueses como Barraxe), alcaide de Chefchauen.
Tetuan, a cidade resistente de Sidi Ali Al-Mandari
Assim, e apesar de teoricamente a situação no chamado Marrocos Verde ser mais estável do que no Marrocos Amarelo, por via do referido acordo de paz, a verdade é que a insegurança reinava em torno das praças de Ceuta, Alcácer Ceguer, Tânger e Arzila. Já no chamado Marrocos Amarelo, assumidamente mais instável, foi possível criar um verdadeiro protectorado com os mouros de pazes da Duquela, se bem que por um muito curto período de tempo.
As praças de Marrocos, isoladas entre si por um território circundante hostil, comunicando essencialmente através do mar, exceptuando algumas ligações terrestres organizadas com forças militares de razoável dimensão, tinham cada uma o seu próprio sistema defensivo, organizado essencialmente a três níveis:
A defesa da praça nos seus limites, constituída pelos sistemas construídos tradicionais, panos de muralha, baluartes e fossos, onde a população se confinava em situações de ataques de grande envergadura.
A vigilância através das atalaias, torres de vigia de ocupação diurna, situadas a uma distância que permitisse contacto visual com a praça, destinadas a avisar os seus habitantes de algum ataque eminente e a permitir que as tarefas diárias extramuros, como a recolha de lenha, se fizessem em segurança.
As almogavérias, enquanto acções preventivas e dissuasoras de eventuais ataques à praça, e de alargamento da sua área de influência e de logística, garantindo a pacificação das aldeias mais próximas ou o seu aniquilamento.
Almogávares de Aragão
Os almogávares eram uma força inspirada nos corpos militares criados pelas coroas de Aragão, Valencia, Castela e Portugal durante a conquista cristã da Península, com o mesmo nome, composta por indivíduos recrutados entre os camponeses, pastores e lenhadores das zonas de fronteira. O termo vem do Árabe Al-mighuar (pl. Al-maghauir), que significa corajoso. Os almogávares portugueses da guerra de Marrocos eram uma força de elite que tinha por missão fazer incursões em território inimigo, destruindo colheitas, roubando gado e fazendo cativos, com o objectivo de pacificar as populações ou afastá-las para áreas mais remotas, para além de combater os mujahidin ao serviço do rei de Fez. As suas acções tinham o nome de almogavérias, entradas ou correrias, e destinavam-se sobretudo a evitar que a partir das aldeias vizinhas às praças surgissem ataques conta as mesmas. Eram liderados por um adalid ou adaíl, termo que tem origem no Árabe Ad-dalid, chefe ou guia, e cada grupo de almogávares era comandado por um almocadém, do Árabe al-muqqadam, que significa o que precede, o que vai à frente.
David Lopes escreve o seguinte sobre os almogávares: “Para encaminhar esta gente nas corridas dos capitães ou nas almogavérias havia guias que bem conheciam os caminhos; esses guias chamavam-se almocadéns, que eram, em regra, mouros do campo convertidos ao cristianismo, isto é, mouriscos. Eram pessoas de toda a confiança dos capitães, porque deles dependia a vida da gente. Alguns tornaram-se notáveis e os seus nomes figuram nas crónicas da época. Por exemplo: Diogo Lopes de Safim, de quem muito fala Damião de Góis nas façanhas de Nuno de Ataíde, ou Pero de Menezes em Arzila, como refere Bernardo Rodrigues em muitas partes da sua obra.” (LOPES, [1937] 1989, p. 43)
Chefchauen, cidade de onde partiam muitos dos ataques contra as Praças portuguesas
Aliás a presença de mouriscos é uma constante na guerra de Marrocos, não só do lado português, como principalmente do lado dos mouros, concretamente de mouriscos expulsos da Península, como se percebe por este relato de David Lopes sobre uma visita que um grupo de cavaleiros mouros fez em redor da muralha de Arzila, expressando-se alguns deles em português e castelhano:
“Vieram então os cavaleiros em muito grande número, talvez mais de 4.000 de cavalo, e rodearam toda a vila a examinar o muro e a cava. Alguns (que falavam portuguez ou espanhol) até gracejaram com as mulheres, porque todos os moradores estavam às janelas ou sobre os muros.” (RODRIGUES, 1915, obra citada)
As almogavérias eram também uma guerra de guerrilha e contra-guerrilha, de emboscadas e de ciladas. Se os portugueses faziam incursões no território inimigo para prevenir ataques às praças, também os alcaides das cidades fronteiras patrulhavam os seus territórios, protegiam as suas aldeias, e faziam ataques-surpresa conta o ocupante português. Muito activos na guerra contra os portugueses foram não só os alcaides de Tetuan e Chefchauen, Sidi Ali El Mandari (Almandarim) e Mulay Ali Berrechid (Berraxe), como também o de Larache, Amin, o de Alcácer Quibir, Sidi Al Arous (Cide Talha Laroz) e o de Jazém, Al Harith (Alharte).
Almogavérias no Campo de Arzila
A área de actuação dos almogávares de Arzila estendia-se desde os limites da praça de Tânger até Alcácer Quibir no Sul e para nascente até aos contrafortes das montanhas onde fica Chefchauen. São referenciadas as serras de Benagorfate, Benamares e Farrobo, os campos de Alcácer e Mençara, as Bocas de Benahamede, Benarroz e Capanes, e as aldeias de Al Haute, Agoní, Algarrafa, Algorfa, Alião, Arrehana, Benabiziquer, Benamacoma, Bugiham, Buxarem e Xercão, entre outras.
A actividade dos almogávares da praça de Arzila é ilustrada de seguida na descrição de alguns episódios ocorridos durante as capitanias de D. Vasco Coutinho, D. João de Menezes e D. João Coutinho, figuras marcantes da presença de Portugal em Marrocos, segundo relatos de Bernardo Rodrigues e David Lopes.
A saia do alcaide
No ano de 1488 o alcaide de Alcácer Quibir Cide Talha Laroz, “pessoa muito principal no reino de Fez e muito fidalgo” arma uma emboscada com 500 lanças a D. Vasco Coutinho, conde degredado em Arzila, que fazia uma “sortida” com 50 cavaleiros. Conta Bernardo Rodrigues que “saiu logo o alcaide da cilada tão de súbito que ao conde foi forçado pelejar com ele (…), foram ambos ao chão. O conde, vendo o alcaide coberto de uma rica saia de malha, foi sobre ele com a espada na mão, e disse-lhe: “rendei-vos alcaide”, o qual, conhecendo-o pelas armas e voz, respondeu: “Almejeli (homiziado), hoje é o teu dia ou o meu”. Tudo se passara em poucos instantes (…) vendo que era inútil qualquer resistência, por se achar entre inimigos, o alcaide rendeu-se. Os portugueses se recolheram a Arzila sem perda, e sem soçobro. Tanto estimou El-Rei esta gentileza, que deu ao Conde o governo da Praça.” (RODRIGUES, 1915, obra citada) (Nota: homiziado=degredado)
O alcaide acabou por ser resgatado por 15.000 dobras de ouro, 15 cativos cristãos e 20 cavalos com as suas selas xarquis (orientais). Mas a saia não lhe foi devolvida, “rica e nomeada e estimada”, e, segundo parece, muito apreciada pelos portugueses, já que D. Vasco se serviu dela durante 25 anos, deixou-a ao seu filho D. João, que a usou 30 anos, que por sua vez deixou ao seu filho D. Pedro, o qual, depois da evacuação de Arzila a deu ao seu cunhado D. Pedro de Meneses, então capitão de Ceuta, que com ela vestido foi morto num combate com o alcaide de Tetuan.
Uma rua na Casbah de Larache
Ataque ao porto de Larache
Os ataques feitos a partir de Arzila tinham também como objectivo os corsários mouros, sobretudo os de Tetuan, que constituíam a maior ameaça à navegação portuguesa e ao abastecimento das praças. Martil e Larache eram as suas principais bases e em 1502 D. João de Meneses organiza um ataque a navios corsários estacionados no rio Loukkos. David Lopes cita o cronista Pedro de Mariz:
“E porque no porto da cidade de Larache, cinco léguas de Arzila, estavam certas galés, e galeotas de Mouros, que pouco havia tinham tomado algumas naus nossas, que também tinham naquele porto, determinou Dom João de Menezes não sofrer aquela injuria: E para isto armou três caravelas, e com outras três, que andavam no estreito, as foi cometer dentro no porto da cidade; e a força de armas, rendeu uma galé real do Alcaide Almandarim (Sidi Al-Mandri), e a queimou (…) e todos os que sairam à defesa dela foram desbaratados de maneira, que pode Dom João trazer cinco galeotas, dois bergantins, e uma das nossas caravelas somente, por não estarem as outras em parte conveniente a mais que a lhe porem o fogo com que arderam.” (LOPES, 1924-1925, obra citada)
O leão de Bugano
Bernardo Rodrigues conta como D. João de Meneses e D. João Coutinho foram atacados por um leão na ribeira de Bugano:
“D. João de Meneses primo de D. João Coutinho, foi atacado por um leão na Ribeira de Bugano. Chegou então D. João, com a voz alta e à mão tinente deu com a lança d’alto uma mortal ferida ao leão, dizendo primeiro “Alarga vilão!” mas não ficou sem a paga, porque o feroz e real leão (…) lhe lançou a mão em uma perna e abrindo-lha até baixo. Chegaram então os outros homens e a fera fugiu. D. João de Meneses morreu pouco depois, e D. João Coutinho, curado por mestre Diogo, por ser o melhor cirurgião de seu tempo vindo de Tânger, sobreviveu, mas todavia, ficou eivado da perna, pela muita carne que dela faltou”. (RODRIGUES, 1915, obra citada)
A Torre de Menagem de Arzila
As correrias de D. Vasco
Nos anos de 1509 e 1510 D. Vasco Coutinho realiza várias correrias no Campo de Arzila, roubando muito gado e fazendo um grande número de cativos.
Em 1509 uma entrada “à Boca de Benahamede e Benarroz leva de presa mais de 30 cativos e mais de 600 cabeças de gado vacum e de 1.000 de gado miúdo”. (LOPES, 1924-1925, obra citada)
O ano seguinte foi especialmente activo para os almogávares de D. Vasco, como conta David Lopes, destacando-se os almocadéns mouriscos Jorge Vieira, Pero de Meneses e Gonçalo Vaz. Nesse ano são referenciadas entradas no campo de Mençara comandadas por Jorge Vieira e D. Francisco de Lima, e D. Vasco comanda pessoalmente uma correria à Serra do Farrobo, onde conquista a aldeia de Arrehana, toma muito gado e 30 cativos, e uma outra ao Campo de Mençara, concretamente à Boca de Capanes, onde derrota uma força dos alcaides de Tetuan, Chefchauen e Alcácer.
A desfeita de Benamacoma
Mas nem tudo corria de feição para os portugueses. Numa entrada a Benamacoma, Jorge Vieira é morto pelo filho do alcaide de Alcácer, Sidi Hamete, sendo cativos 23 portugueses. Bernardo Rodrigues descreve assim a entrada dos cativos em Alcácer Quibir:
“Entre os cativos eram Álvaro Velho e João Fernandes de Abreu e este malferido com uma cutilada pelo rosto e, por isso, muito triste. Iam os cativos todos atados uns aos outros pelas ruas de Alcácer, diante do filho do alcaide vencedor, com muitos atabales, anafis e outros tangeres de cornos e outros instrumentos e multidão de gente, homens, mulheres e moços fazendo alegrias, como é costume. Vendo o companheiro tão aflito, chegou-se a ele Álvaro Velho e disse-lhe: compadre, de que is triste, pois nos levam com tanta honra, tangendo gaitas e sanfoninhas, como diz a cantiga que por nós outros se fez, que diz: lhevarannos por las calhes com gaitas y çanfoninhas?” (RODRIGUES, 1915, obra citada)
A história de Amame e Ruço Rodado
No ano de 1514 D. João Coutinho obtém uma vitória estrondosa sobre uma força conjunta dos alcaides de Alcácer, Jazém e Larache no local do Porto das Pedras. Segundo Bernardo Rodrigues “foram 44 mouros cativos, e foram mortos neste desbarate passante de duzentos e cinquenta de cavalo (…) Eram os nossos cento e quarenta ou cento e quarenta e quatro de cavalo; os mouros afirmam que eram novecentos ou mais. Tomaram-se noventa e oito cavalos (…) Ouve nestes cavalos muitos e mui estremados ginetes das pessoas dos alcaides.” (RODRIGUES, 1915, obra citada)
Entre eles estavam dois “poldros irmãos, os quais saíram muito grandes e formosos cavalos” pertencentes a Cide Zião (Sidi Ziane), parente do alcaide de Alcácer, que os tinha negado ao irmão de rei de Fez, Mulay Naçar, “o mór inimigo do nome cristão e o mais cruel homem do nosso tempo, mandando o reino e sendo mais temido que el-rei”, dizendo que esses cavalos serviam na fronteira dos cristãos, “e que neles esperava fazer muita guerra.” (RODRIGUES, 1915, obra citada)
Cide Zião foi morto nesse dia com uma lançada de D. João, “e logo o seu cavalo Ruço Rodado ficou entre os nossos, e assim o fez o Amame, em que um sobrinho seu vinha, que logo foi morto e passado de muitas lançadas”. (RODRIGUES, 1915, obra citada)
Os cavalos acabaram por ser vendidos e vir para Portugal, mas o Ruço Rodado voltaria Arzila, onde morreu, sendo enterrado junto ao Baluarte de S. Francisco, do qual o seu novo amo Diogo Botelho era capitão.
A rua da Casbah em Arzila
Os três mouriscos de Arzila
Uma referência a três almocadéns mouriscos que serviram em Arzila _ Pero de Meneses, Gonçalo Vaz e Diogo da Silveira.
Sobre o primeiro, esta passagem de Bernardo Rodrigues _ “Pêro de Meneses, cujos feitos foram contados por Mestre António, pai de Bernardo Rodrigues nas “Cavalgadas e boas entradas que fez Pero de Meneses, almocadém de Arzila”, ou “livro das cousas de Pêro de Meneses”, livro que D. João Coutinho recolheu, depois da morte de mestre António, por seus muitos serviços teve o hábito de Cristo, apesar de mourisco. Era homem sisudo e calado.” (RODRIGUES, 1915, obra citada)
Sobre o segundo este impressionante relato compilado por David Lopes _ “Gonçalo Vaz, era natural da serra de Benagorfate, e muito travesso e brigoso, e por isso andou homiziado de umas e outras serras vizinhas, Benamares, Benarroz, Farrobo (…) Namorado de uma mulher muito formosa, de Benarroz, fugiu com ela e trouxe-a Arzila, onde se fez cristão, e ela acabou por fazer o mesmo tomando o nome de Maria Dias. Nas suas almogavérias obteve muitas vitórias e tornou-se abastado, mas no fim de Abril de 1516, veio el-rei de Fez mais uma vez pôr cerco à vila. Enviado pelo conde para dar numa quadrilha, Gonçalo Vaz, de noite caiu duma rocha abaixo e quebrou uma perna. Partido para Tânger para se tratar, nada lhe valeu e para andar lhe era necessária uma muleta. Quis logo voltar a Arzila e apesar de todos os conselhos dos seus companheiros e capitão, embarcou numa caravela passageira (não armada), que ia para Arzila. A caravela foi atacada e Gonçalo Vaz prendido. Os outros que eram cristãos foram cativos, e a maior parte, depois resgatada, mas aquele que renegou a sua fé e se pôs ao serviço do infiel só com morte afrontosa pode espiar o seu crime. Foi levado a Tetuão, em presença do seu alcaide Almendarim. Este mandou fazer uma grade e metê-lo dentro, atado e aspado, de modo que se não podia bulir. E posta a grade no meio da praça ou mercado todos os habitantes e mouros de outros lugares vinham ou cuspir-lhe uma afronta ou exercer violência. Afinal arrancaram-lhe com tenazes os dentes, lábios, língua, unhas, carnes, etc. Apenas lhe deixando os olhos para que visse os tormentos que lhe davam. Morreu ao cabo de dois dias.” (LOPES, 1924-1925, obra citada)
Sobre Diogo da Silveira escreveu Bernardo Rodrigues _ “O grande e muito afamado Diogo da Silveira tornou-se cristão em 1525, depois de sua mulher e filho terem sido cativados pelos de Arzila, durante a capitania de António da Silveira. Deus trouxe Diogo da Silveira em busca de sua mulher e filho, com a qual vinda veio toda a felicidade e boa ventura, e com sua vinda começou levantar cabeça, trazendo presas de mouros, mouras e gado, com que a vila tornou em sua prosperidade, crescendo em gente de cavalo e em abastança, como se logo verá começando de sua vinda e grandes feitos e de sua pessoa e qualidade, e certo que, ainda que é vivo, se pode sem alguma lisonja louvar”. (RODRIGUES, 1915, obra citada)
A ponte portuguesa sobre o Oued Taza
A ponte, o rio e a chuva
Conta Bernardo Rodrigues que “Arzila estava em grande necessidade de gado. D. João quis provê-la, e determinou saltear Tintais, que era uma aldeia segura dos mouros por se encontrar muito perto de Alcácer. Decidiram fazer isso de noite, com 250 de cavalo, Pero de Meneses sendo almocadém. Partiram com pouca chuva. Conseguiram o que quiseram trazendo grande presa, mas agora a chuva era muito grossa e cerrada. Chegados ao ribeiro que à ida estava seco, a água dava pelas acítaras dos cavalos. Mais longe a água da ribeira que deviam atravessar ia por cima das árvores. Enquanto isso se passava Alcácer teve notícia do saque e os mouros perseguiram os portugueses. Mas como julgaram que os de Arzila não podiam ter ousado isso sem ter ajuda de Tânger, não ousaram atacar o conde, que teve tempo de ir até à Ponte que acharam descoberta, mas a ribeira vinha tão cheia que, sendo os olhos da ponte cheios, trasvertia por fora. Uma vez os portugueses do outro lado o alcaide de Alcácer nada mais podia fazer e D. João Coutinho aproveitou para fazer descansar sua gente, e os cavalos e gado comerem as ervas. Ficaram assim até meio-dia, e só o dia seguinte pela manhã chegaram a Arzila. Esta cavalgada ficou em muita fama e pôs grande espanto nos mouros, por se fazer tão perto de Alcácer e não ir nela mais que a gente de Arzila.” (RODRIGUES, 1915, obra citada)
A peste
David Lopes conta como a peste chegou e partiu de Arzila:
“O ano de 1522, depois da fome, veio a peste em Marrocos. O conde tomou muitas precauções, e não aceitava nenhuma cáfila de mercadores, nem suas mercadorias, e proibiu as almogavérias. Mas sete ou oito moradores deixaram-se ficar de noite fora da cidade, e tomaram três mouros e oito bois. Ao outro dia chegaram aos muros da cidade e festejaram a sua presa, comendo e bebendo. Depois como o conde não os queria receber disseram que iam para Tânger. O conde mandou-os prender, queimar os vestidos de todos, e lavar com a água do mar aos mouros. Depois fê-los entrar a dormir com os outros, por que se dizia que nas serras donde vinham não havia peste. Mas os mouros tinham realmente a peste, e comunicaram-na à cidade. Em 12 de Janeiro morreram os primeiros da maladia que atingiu a maior força em Março, com 20 a 25 mortos por dia, vindo a desaparecer em Junho. Em fevereiro, o conde aproveitou-se então da visita duma caravela de Lisboa, para embarcar para Tavira a condessa e seus filhos. Seguiram o seu exemplo muitos mercadores e outros moradores. Entre Fevereiro e Março desembarcaram em Tavira mais de 500 pessoas, mulheres e crianças. A condessa ficou alojada na Renilha e as outras mulheres na ilha dos cães. No dia de S. João, a peste acabada D. João foi visitar os moradores, e fizeram então uma grande festa. Depois voltaram as mulheres que chegaram à vila na entrada de Setembro.” (LOPES, 1924-1925, obra citada) (Nota: cáfila=caravana)
Um morabito na região de Alcácer Quibir
Benjija, alcaide de Jazém, pede aos portugueses um certificado de valentia
No ano de 1532 o alcaide de Jazém, de nome Benjija, casou a sua filha com o alcaide de Chefchauen, Mulay Omar Abdesalam. Conta Bernardo Rodrigues que “quis de caminho de Jazém para Xexuão cometer algum feito que propiciasse esse casamento. (…) Arzila foi o seu objectivo. Vinham com ele Caroax, xeque dos Alarves, cide Alexacorão, irmão do alcaide da alcáçova de Fez, e cide Naçar, alcaide de Larache, sendo o número da gente para cima de 1.800 de cavalo. Entraram no campo de Arzila, num dia em que D. João regressou de uma corrida a Alião, sem fazer nada. O dia seguinte, (…) Benjija amanheceu no Xercão, junto da vila e teve notícia do estado dos portugueses, cansados. D. João, quando teve sinal da presença dos mouros, pensou que era o alcaide de Alcácer, por ser o mais próximo dos que habitualmente os atacavam. Decidiu de sair ao encontro. Enviou o adaíl na dianteira, mas que não travasse batalha antes que chegasse, e mandou buscar a bandeira de Cristo à vila. Mandou o mourisco Diogo da Silveira, almocadém, que guiasse o alferes, e junto da bandeira ordenou que fosse seu filho, D. Francisco. Os mouros muito numerosos já perseguiam o adaíl, quando D. João chegou e atacou, de modo que todos, mouros e cristãos de mistura, deram na batalha e bandeira do alcaide e, rompendo a sua gente, a puseram em completo desbarate. Perseguindo os mouros certos portugueses foram muito longe do lugar da batalha, como D. Francisco, filho do capitão, o qual depois o repreendeu asperamente. O despojo foi muito grande.
Durante a Batalha Bernardo Rodrigues tomou a bandeira do alcaide, e orgulhoso a pôs à sua porta ; e não houve homem nem mulher que não fosse ver o seu troféu e dar-lhe parabéns do seu feito. Também aconteceu que o alcaide Benjija foi jugado morto ou perdido. Afinal encontraram-no sozinho com a lança dum portuguez. Mandou à vila um recado, pedindo que o portuguez que o tinha atacado e a quem, defendendo-se, pegou a lança, o escrevesse e assinasse para que o rei de Fez não pensasse que tinha fugido. Assim foi feito, o portuguez sendo um criado de D. João, e este certificando que o alcaide tinha lutado como um leão”. (RODRIGUES, 1915, obra citada) E esta?
Pazes assinadas e pazes rotas
Em 1538 “Marrocos estava vivendo um período de transformações. O rei de Fez já pouco poder tinha sobre Marrocos, eram os Xerifes (o irmãos Ahmed al-Araj e Mohammed ech-Cheikh) que estavam a impor-se. O rei de Fez pensou então fazer pazes com o rei de Portugal: era um inimigo a menos. O tratado de paz foi negociado por de uma parte Mulei Abrahem e da outra D. João Coutinho. O acordo foi assinado sobre o rio doce, perto de Arzila, que separa os “dois reinos”. Este acordo dizia que por tempo de onze anos haveria paz entre os dois reinos. Foi este tratado pouco respeitado. Apesar das pazes assinadas esse mesmo ano por D. João com o rei de Fez Mulei Hamete, as lutas continuavam entre os mouros e os portugueses. Por isso em 1543, o rei de Fez declarou as pazes rôtas.” (LOPES, 1924-1925, obra citada)
Não é uma resposta que deixo aqui, mas uma pergunta. Em relação à obra ENSAIO DE ICONOGRAFIA DAS CIDADES PORTUGUESAS DO ULTRAMAR (V. 1- Marrocos e ilhas adjacentes . – V. 2- África ocidental e África oriental . – V. 3- Ásia próxima e Ásia extrema . – V. 4- Brasil e notas adicionais)
Luís Silveira (Autor) , Junta de Investigações do Ultramar (Editor)
Ilustrado com 1141 estampas, 18 coloridas e 6 mapas. [cm:] 50,0×36,5; 625 págs.
luis silveira , no historiasdeportugalemarrocos.wordpress.com, existem registos da iconografia das cidades portuguesas citadas no V.1 “Marrocos e ilhas adjacentes” ?