Encantadores de serpentes na Praça Jemaa El-Fna em Marraquexe
Denominados Berberes ou Imazighen, o povo autóctone do Norte de Africa encerra na sua origem, na sua língua e na sua cultura um carácter misterioso e fascinante, fruto séculos de vida isolada nos confins das montanhas. Apesar do seu orgulho e amor próprio, e da resistência que sempre opuseram aos povos que invadiram o seu território, os Imazighen estão na base da criação da Nação que é hoje Marrocos, de cuja identidade são um elemento preponderante e determinante.
Se houve tempos em que o seu estatuto não foi reconhecido oficialmente, a situação é hoje diferente, como se pode constatar nesta passagem do discurso do Rei Mohamed VI, aquando da instalação do Conselho de Administração do Institut Royal de la Culture Amazighe, no dia 27 de Junho de 2002 no Palácio Real de Rabat:
“Velámos pessoalmente por criar as estruturas desta instituição, a qual pretendemos que desempenhe plenamente as suas nobres missões educativa, cultural e civilizacional, trabalhando para a salvaguarda da nossa cultura amazighe, consolidando o seu estatuto nos domínios cultural, mediático e educacional, enquanto riqueza nacional e motivo de orgulho para o conjunto dos Marroquinos”. (INSTITUT ROYAL DE LA CULTURE AMAZIGHE, página electrónica citada)
Cáfila na praia de Essaouira
A designação Berbere tem origem no grego Bárbaro, que designava todos os não gregos ou falantes de uma qualquer língua que não fosse a língua grega.
“A palavra ‘bárbaros’ não tinha, originalmente, nuance pejorativa, significando simplesmente ‘não grego’, sendo aplicada a toda pessoa cuja língua não era compreendida pelos gregos ou alguém que se exprimisse por onomatopeias (‘bar-bar’), segundo a percepção dos gregos.” (WIKIPEDIA, 2016.08.21, página electrónica citada)
O termo generalizou-se e adquiriu um sentido depreciativo com a conquista romana do Norte de África, que passaram a designar os seus habitantes como bárbaros, à semelhança da designação que utilizavam para os Vândalos. Os árabes adoptaram essa designação, e posteriormente os europeus passaram a designar o Magrebe com o nome Berbéria ou Barbária.
Apesar de a designação não ter hoje esse caracter depreciativo, os Berberes consideram-na como pouco digna, já que se denominam na sua língua, o Tamazight, como Imazighen (plural de Amazigh), que significa homens livres. O seu território de origem, o Magrebe, é por eles designado Tamazgha. Este significado de homens livres é contestado pela realidade de alguns dialectos do Tamazight, como o de Figuig, no qual o verbo zegh significa rebelar-se, e assim amazigh teria supostamente como significado rebelde. (WIKIPEDIA, 2016.08.22, página electrónica citada)
Neste texto usaremos tanto o termo berbere como amazigh sem que numa ou noutra situação o seu significado não seja apenas o da designação deste grupo étnico-linguístico heterogéneo que habita e Magrebe desde tempos imemoriais.
Na Kasbah de Ameridil em Skoura
O termo Berbere ou Amazigh é utilizado para designar as populações do Magrebe, mas alguns autores defendem que não se pode considerar que exista uma raça Berbere, já que os falantes das línguas Berberes têm origens étnicas diversas. A própria Encyclopédie Larousse, ao estabelecer a distribuição geográfica Berbere no Norte de África refere os falante berberes e não simplesmente os berberes.
Segundo as investigações levadas a cabo por Bernard Lugan, “há cerca de 20.000 anos uma população situada entre as actuais Eritreia e Etiópia (Africa de Leste ou Africa Oriental) cindiu-se em três grupos: um desses grupos subiu o Nilo e depois dirigiu-se para os países do Magrebe que penetra pelo Leste (…) Este grupo chamado Protoberberes, antepassados dos actuais Berberes, encontra chegando ao Magrebe, o Mechta el Arbi (ou Homem de Cro-Magnon do Magrebe descrito por Gabriel Camps)”. (WIKIPEDIA, 2016.08.22, página electrónica citada)
Estes indivíduos representariam a última migração directa de África para a Europa e pertenciam ao Haplogrupo E1b1b. Na Europa o seu ADN está particularmente presente nos Balcãs e na Península Ibérica. (HISTOIRE ISLAMIQUE, 2015, página electrónica citada)
Cerâmica berbere. Autor desconhecido
A origem do Homem de Mechta el-Arbi está envolta em polémica, discutindo-se se será europeia ou do médio Oriente. Associado a uma indústria lítica, chamada Iberomerusiana, acabou por se apagar progressivamente, mas o seu desaparecimento nunca foi completo. Há cerca de 9.000 anos emerge um outro grupo, os Capsianos, que alguns autores consideram os verdadeiros antepassados dos berberes, que serão provavelmente esses tais Protoberberes referidos por Lugan.
Em escavações arqueológicas foram descobertas as mais antigas obras de arte de África ligadas a estes chamados Protomediterrânicos, que “estão na origem das maravilhas artísticas do Neolítico. Estão mesmo, e este facto é importante, na origem da arte berbere. Existe um ar de similitude entre entre estas decorações capsianas ou neolíticas e as que os berberes usam ainda hoje nas suas tatuagens, tecelagens e pinturas em cerâmica ou nas paredes, que é difícil rejeitar toda a continuidade neste gosto pela decoração geométrica…” (WIKIMAZIGH, 2008, página electrónica citada)
Segundo Dalil Boubakeur, referindo-se à polémica sobre a possível origem dos berberes na Europa ou no Próximo Oriente, os berberes “não vieram de lado nenhum” (BOUBAKEUR, 2014, obra citada). Ou seja, defende que o Homo Sapiens que habitava o Magrebe é resultado da evolução do Mechta el-Arbi e dos Capsianos e escreve a este propósito:
“Resta, pois, a origem local, in situ, a mais simples (…) Os antropólogos especialistas da África do Norte como M-C. Chamla e D. Ferembach admitem hoje uma filiação directa, contínua, desde os neandertais norte-africanos (Homens do Djebel Irhoud) até aos Cromagnoides que são os Homens de Mechta el-Arbi. O Homem ateriano de Dar es-Soltan seria intermediário mas que teria já adquirido as características do Homo sapiens sapiens”. (BOUBAKEUR, 2014, obra citada)
Mulher na Muralha de Essaouira
Relativamente aos berberes de pele clara, olhos azuis e cabelo louro, patente sobretudo nos Cabilas argelinos e Rifenhos marroquinos, a explicação mais plausível é a de que “não remontam unicamente aos raids posteriores dos Vândalos, mas também à antiga vaga nórdica”. (HISTOIRE ISLAMIQUE, 2015, página electrónica citada)
Os processos de conquista e ocupação de Marrocos, fosse pelos romanos, fosse posteriormente pelos próprios árabes, não foram acompanhados por migrações massivas de populações, que alterassem etnicamente a estrutura populacional do país, mas antes processos de mudança na administração e religião. Ou seja, os habitantes de Marrocos são hoje basicamente os que sempre foram, mas a sua forma de viver foi influenciada pelos vários invasores, dependendo os fenómenos de aculturação do isolamento e inacessibilidade das comunidades.
“No final da Antiguidade (os países da África do Norte) pertenciam também seguramente ao mundo cristão e à comunidade latina. Esta mudança cultural, que pode parecer radical, não foi no entanto acompanhada de nenhuma modificação étnica importante e são estes mesmos homens, estes Berberes que muitos se consideravam romanos que hoje se sentem árabes.” (WIKIMAZIGH, 2008, página electrónica citada)
Oukaimeden no Alto Atlas
A invasão árabe de Marrocos provocou o êxodo de muitas das tribos berberes para as montanhas e para o deserto, já que os árabes se assenhorearam das cidades e planícies férteis. Os berberes que ficaram nessas áreas não só se islamizaram, como se arabizaram. Se por um lado não existia um Estado berbere organizado para fazer frente a uma invasão, mas sim um conjunto de tribos desarticuladas, também é verdade que a invasão foi sobretudo um conjunto de operações militares que acabou por integrar nas suas forças muitas das tribos. Veja-se apenas o caso dos rifenhos de Tarik Ibn Zyad utilizados por Mussa Ibn Nussayr para invadir a própria Península Ibérica.
Mas no geral não foi assim e podemos considerar que no Magrebe a invasão árabe teve um carácter oposto ao que teve na Península Ibérica. Enquanto no Al-Andalus se observou um processo de arabização, mas não de islamização, no Magrebe a islamização não foi acompanhada pela arabização das populações autóctones. O êxodo dessas populações para áreas extremamente remotas e a independência que mantiveram em relação ao poder político árabe deu inclusivamente origem à criação de duas realidades político-administrativas, denominadas Bled el-Makhzen, ou País da Lei, onde a autoridade do sultão era efectiva, e o Bled es-Siba, ou País do Caos, onde as tribos berberes geriam autonomamente os seus destinos.
Skoura e a encosta Sul do Alto Atlas
O processo de islamização e de tentativa de submissão das tribos foi contínuo, com dois períodos principais de ofensiva/integração, ou seja, durante o século VII com a invasão árabe comandada por Oqba Ibn Nafi, que conquistou as cidades e planícies, e com as invasões hilalianas do século XI, sobretudo por mão dos Banu Hilal e Banu Maaquil, que se estabeleceram no Vale do Dadés e no chamado País Chiadma, na região de Essaouira. A facilidade com que decorreu o processo de islamização foi também económica, já que “os árabes impunham a sua política tributária aos povos conquistados, sendo que os recém-convertidos ficavam isentos de pagar impostos. Deste modo os habitantes das zonas montanhosas do norte acabaram por se converter ao Islão embora mantendo as suas crenças tradicionais nos espíritos, nos santuários locais e nos homens santos.” (MENDES, 2016, p. 2-3)
“Em parte romanizados e depois cristianizados, os Berberes (cujos mais importantes grupos tribais na Idade Média são os Zenatas, os Sanhajas e os Masmoudas) convertem-se massivamente ao Islão nos séculos VII e VIII d.C, enquanto a arabização é mais tardia e nunca foi levada a cabo integralmente”. (ENYCLOPEDIE LAROUSSE, página electrónica citada)
Apesar deste facto, os Berberes unificaram por duas vezes Marrocos e o próprio Al-Andalus, através dos Impérios Almorávida e Almóada, pondo em prática uma interpretação do Islão extremamente rigorosa e pouco aberta, combatendo as correntes mais progressistas, como o Sufismo, que consideravam como heresia.
Chefchauen
À data da conquista de Marrocos pelos árabes existia uma diversidade religiosa no seio das tribos, fosse ela de carácter pagão, zoroastrista, cristão ou judeu. Ahmed Tahiri refere que na “cidade de Fez habitavam duas tribos. Os Zenata e os Zuwaga. Havia entre elas algumas que eram cristãs, outras que professavam o judaísmo e ainda os majus (zoroastristas)” e que nos “territórios de Tamasna e de Tadla (…) a maior parte dos habitantes dessas regiões professavam a religião judia ou cristã” e que “o islão era ainda minoritário por volta do ano 788”. (TAHIRI, 2013, pp. 40-41)
Segundo este autor, existe um hiato ao nível das fontes escritas entre a conquista árabe e os períodos Idrissida e Almorávida, que abarca três séculos de história, “deixando grandes zonas de obscurantismo” (TAHIRI, 2013, p. 30). Este hiato ignora a fundação do Reino de Nakur pelas tribos Nafza do Rif e do Reino dos Banu Tarif ou Reino dos Bergwatas, no Bouregreg, ou a fundação do Reino dos Banu Midrar pelos Miknasa, com base na florescente capital Sigilmassa, ponto de chegada das caravanas ao Tafilalt. Estes reinos seriam destruídos pelos Magrawa e pelos Almorávidas, por razões de centralização do poder, mas também para o desvio das rotas das caravanas após a fundação da cidade de Marraquexe, dada a “importância de cidades como Nakur ou de Sigilmassa situadas nas vias que uniam a África subsariana (Bilad al-Soudan) com a Europa (al-Ardh al-kabira)”. (TAHIRI, 2013, p. 37)
Nakur, considerada a “maior cidade do Magrebe extremo” e Sigilmassa, “considerada nesse tempo como a segunda cidade do Magrebe” (TAHIRI, 2013, p. 37), tinham comunidades judias significativas, que controlavam o comércio, de tal forma que “numerosos aglomerados judeus estruturavam-se nos grandes eixos comerciais do Magrebe extremo, em relação directa com as comunidades andalusas”. (TAHIRI, 2013, p. 39)
Todos estes factores teriam influência nas perseguições que essas comunidades judias viriam a sofrer nos tempos seguintes.
Um morabito no Vale do Draa
A arabização, já referida para o caso das tribos que se mantêm nas áreas onde o poder do sultão é efectivo, acentua-se com as invasões Hilalianas, mas com uma expressão bastante reduzida. A criação de inúmeras confrarias berberes e o movimento dos santos berberes, que originam a fundação de vários Ribats e Zauias entre os séculos XVI e XIX nas fronteiras do Bled el-Makhzen e Bled es-Siba têm um papel de grande relevo na resolução das crises entre as tribos e o sultão e nas próprias crises inter-tribais, pelo seu poder pacificador e de regulamentação jurídica.
“O ribat foi o exemplo alcaçando. Foi ao mesmo tempo convento e guarnição militar, base de operação contra os infiéis ou os heréticos (…) Os monges-soldados que ocupam estes castelos treinam-se para o combate e instruem-se nas fontes da ortodoxia mais rigorosa (…) Nas zonas não ameaçadas, o ribat perde o seu carácter militar para se tornar num centro religioso muito respeitado. Confrarias, que seria exagerado comparar às ordens religiosas cristãs, organizam-se, em épocas recentes, criando centros de estudos religiosos, as zaouias, que são herdeiras dos antigos ribats. Este movimento, muitas vezes misturado com o misticismo popular, está ligado ao ‘morabitismo’, outra palavra derivada do ribat. O morabitismo contribuiu grandemente para alcançar a islamização dos campos, com o preço de algumas concessões secundárias de práticas anti-islâmicas que não anulavam a fé do crente.” (WIKIMAZIGH, 2008, página electrónica citada)
Aliás refira-se que a identidade de Marrocos é profundamente marcada por esta simbiose árabe-berbere, que as mais importantes dinastias que unificaram o país reflectiram, fossem os Xerifes Sádidas, os Merinidas ou os Oatácidas.
A separação entre os processos de islamização e arabização é um fenómeno normal, tendo em conta que muitos povos islamizados não foram arabizados, veja-se o caso de Turcos, Iranianos, Afegãos, Paquistaneses, Indonésios, etc. Da mesma forma, “todos os Berberes, teriam podido, como os Persas e os Turcos, ser islamizados mantendo-se eles próprios, conservando a sua língua, a sua organização social, a sua cultura.” (WIKIMAZIGH, 2008, página electrónica citada)
Vendedor de frutos secos na Praça Jemaa El-Fna em Marraquexe
Os berberes sempre tiveram um grande sentido de apego ao seu território e a resistência berbere ao colonialismo francês e espanhol foi decisiva para a sua derrota, levando a cabo uma guerra sem tréguas, que cimentou o próprio nacionalismo marroquino, baseado nesta diversidade étnico-cultural. Nomes como o de Abdelkrim El-Khatttabi na resistência do Rif aos espanhóis, de Hamou Zayani no Médio Atlas, Assou Oubasslam na liderança dos Ait Atta na região do Todra ou El Hiba na resistência do Sahara e do Suss ao ocupante francês ficaram na História como símbolos dessa guerra nacionalista.
O papel dos Imazighen foi determinante para a independência de Marrocos, não só pela luta que levaram a cabo contra o ocupante colonialista, como pela importância que as alianças entre eles e Mohamed V tiveram para a consolidação da unidade nacional marroquina. Se é verdade que a questão da arabização e do não reconhecimento oficial da língua tamazight provocou contestação por parte de alguns sectores berberes que puseram em causa essas alianças, “os berberes rurais constituíram uma componente pró-monárquica muito importante, permitindo a consolidação do poder, da sua posição enquanto autoridade suprema e infalível. O monarca sempre defendeu uma identidade nacional na qual os berberes se incluíam. Para reforçar essa mensagem de inclusão, Hassan continuou a tradição familiar casando com uma mulher berbere.” (GUERRA, 2009, p. 223, citando B. Weitzman)
Principais unidades étnico-linguísticas amazigh
A questão da definição das várias identidades amazigh não é fácil, já que não existe uma correspondência entre etnias e dialectos, podendo-se de forma grosseira falar de unidades étnico-linguísticas. Nesta perspectiva podemos considerar três grandes grupos étnico-linguísticos, associando a língua à ocupação do território: o Zenata no Rif e zona Oriental, o Masmouda-Sanhaja nas montanhas do Atlas, Médio, Alto e Anti-Atlas, e o Al-Hassânia no Sahara.
No entanto será mais correcto fazê-lo de forma separada, partindo das línguas, já que, na opinião dos autores consultados são elas que definem os grandes grupos identitários berberes.
Salem Chaker refere-se assim à Língua Berbere:
“O berbere pode ser considerado como a língua ‘autóctone’ do Norte de África e não existe actualmente nenhum vestígio positivo de uma origem exterior ou da presença de um substracto pré-/não-berbere nesta região. Tão longe quanto possamos recuar, o berbere já está instalado no seu território actual.” (CHAKER, 2003, p. 5)
O berbere é um dos ramos da grande família linguística chamito-semítica ou afro-asiática, designações que encontramos em vários autores.
Unidades linguísticas do tamazight
Em Marrocos existem três dialectos principais da língua Tamazight ou três regiões berberófonas como lhes chama Chaker: (CHAKER, 2003, p. 5)
O Rifenho ou Tarifit, falado por cerca de 3 milhões de pessoas, que pelo facto de se encontrado associado ao aos falantes Beni Snassen, Chaouia e Ghomara constitui com eles a unidade linguística Zenata, sendo o dialecto falado no Rif.
O Tamazigh do Marrocos Central ou simplesmente Tamazight, falado por 3 a 4 milhões de pessoas, constitui o dialecto falado no Médio Atlas, no Alto Atlas Central e Oriental e no Anti-Atlas Oriental ou Jebel Saghro.
O Chleuh ou Tachelhit, falado por cerca de 8 milhões de pessoas, que constitui a unidade linguística Masmouda-Sanhadja, é o dialecto falado no Alto Atlas Ocidental, no Suss e no Anti-Atlas.
Nas comunidades berberes existem inclusivamente tribos arabófonas ou de influência linguística árabe, como os Ghomara do Rif ou os Regraga do Suss.
Em Marrocos apenas o Tamazight do Médio Atlas ou Tamazight Central é escrito, utilizando um alfabeto chamado Tifinagh, também chamado alfabeto líbico-berbere, cuja origem é fenícia. O Tifinagh desapareceu na antiguidade, sendo apenas conservado pelos Tuareg. Nos anos 60 do século passado foi recuperado e reintroduzido em uso como alfabeto da língua Tamazight.
Tifinaghs e gravuras do “Col des sandales” (tighatimin) Ahaggar. Foto H. Claudot-Hawad
Segundo J.-P. Maitre, “Tifinagh é o plural de Tafineq que significa caractere de escrita em tuaregue. Por extensão, tifinagh designa todas as gravuras e as pinturas assim como os caracteres alfabéticos. Podemos mesmo dizer que é este último significado que prevalece em certos casos”. (WIKIPEDIA, 2016.08.07, página electrónica citada)
O Tifinagh é um alfabeto sem vogais e sem uma ordem determinada de escrita, podendo escrever-se da esquerda para a direita e de cima para baixo e vice-versa.
A reintrodução do Tifinagh anteriormente referida ocorreu em Paris na Académie Berbère “com o objectivo de se estabelecer um alfabeto standard com base nos tifinaghs tuaregues, afim de fazer reviver e de poder transcrever o conjunto das variantes locais da língua berbere: Tamazight” (WIKIPEDIA, 2016.08.07, página electrónica citada). Este alfabeto tomou o nome de Neotifinagh.
“A letra Z do alfabeto Tifinagh, ‘o aza ou yaz’, representa o ‘homem livre’ (…) está actualmente presente na bandeira berbere oficializada em 1998 para simbolizar o povo amazighe”. (WIKIPEDIA, 2016.08.22, página electrónica citada)
Principais tribos amazigh
Conforme referido anteriormente, a realidade étnica dos Imazighen em Marrocos é extremamente complexa e difícil de estabelecer e hierarquizar. Os vários autores consultados referem Nações, Etnias, Famílias, Confederações, Tribos e Facções, procurando estabelecer relações entre elas e destas com o território que ocupam, mas não existe uma sistematização a um nível macro, sendo mais fácil referenciar os territórios com as unidades étnicas de nível inferior, ou seja, as tribos. Esta dificuldade é indissociável da inexistência de uma correspondência entre etnias e línguas, como também foi referido.
Berlanga Adell refere que “o vocábulo tribo (em árabe qabila) refere-se a um grupo agnático, ou de descendência agnática ou patriarcal, que forma uma entidade social, económica e política ao mesmo tempo (…) A tribo não é sempre estável, pois pode ser considerada como uma aliança politico-socio-económica de patriarcados que têm um interesse comum, como a apropriação ou defesa de um território, para além de ser também uma unidade territorial”. (BERLANGA ADELL, 2004, p. 26)
Historicamente temos referências ao período inicial da islamização de Marrocos como sendo um território dominado ou partilhado por dois grandes grupos étnicos, os Zenata a Norte e os Sanhaja a Sul. Dentro destas etnias constituem-se Famílias de tribos poderosas, como os Ait Oumalou ou os Masmoudas, que integram Confederações de Tribos, como os Ait Yafelman, Nafzaouia, Ait Atta ou Beni M’Guild, tribos essas que se encontram referenciadas em número de 267 (LES TRIBUS DU MAROC, 2016 página electrónica citada), e que por sua vez se subdividem em Facções ou Clãs.
“O regime político dos berberes era o da anarquia organizada. O Alto Atlas em meados do século XIX estava dividido em pequenas repúblicas (…) E ao mesmo tempo estabeleciam sistemas de alianças equilibradas que permitiam aos pequenos estados autónomos da montanha entreajudar-se na guerra e na paz.” (BERLANGA ADELL, 2004, p. 27)
Principais confederações de tribos amazigh
Neste universo complexo de estruturas sociais podemos afirmar (com todas as reservas) que se identificam 5 grandes Confederações em Marrocos, sem prejuízo de que dentro destas não existe uma hierarquização linear, referenciando-se outras Confederações de menor nível:
Os Zenata nas montanhas do Rif, os Miknassa no Leste do país, os Ait Oumalou no Médio Atlas, Chaouia, Alto Atlas Oriental e Jebel Saghro, os Masmouda no Alto Atlas Ocidental, Doukkala e Abda e os Sanhaja no Suss, Draa e Sahara.
Não será nunca demais referir que esta sistematização não constitui a forma correcta de identificação das várias realidades amazigh, já que as mesmas são fundamentalmente linguísticas.
A cultura amazigh é de extrema riqueza e manifesta-se sobretudo na arquitectura e artesanato, com destaque para as tapeçarias, o vestuário, a cerâmica e a bijutaria. Está também patente em aspectos etnográficos, como por exemplo as tatuagens. Em todas estas manifestações artísticas tem especial relevo a simbologia, de origem imemorial, que remonta à própria pré-história.
A Kasbah de Ait Benhaddou
Sobre a arquitectura berbere, concretamente a chamada Arquitectura das Kasbahs, e sem querer desenvolver aqui o tema em profundidade, refira-se que, apesar de constituir de facto uma arquitectura enraizada no modelo de construção e ocupação do território pelos berberes, muito ligada ao povoamento do Vale do Dadés a Vale do Draa e contrafortes Sul do Alto Atlas, é muito provavelmente na sua origem um modelo trazido do Yemen pelas tribos árabes Hilalianas nos séculos XI e XII, sobretudo pelos Banu Maaqil, sendo por demais evidente a influência da arquitectura Yemenita que patenteia, independentemente do facto de ter adquirido aspectos próprios, sobretudo nos elementos decorativos.
“É igualmente possível como sugere Jean Mazel, que a tradição arquitectónica tenha sida transportada do Yemen do Sul (Hadramaout) pelos Himiaritas. Não podemos excluir tão pouco, que os Árabes tendo emigrado posteriormente para Oeste até à chegada a Marrocos dos Banu Hilal e dos Banu Maaqil, tenham trazido com eles construtores yemenitas.” (STEVENS, 2015, página electrónica citada)
Mas a simbologia da arte berbere está sobretudo plasmada nos elementos decorativos utilizados nos tapetes, tatuagens, bijutaria e cerâmica. São elementos que remontam a tempos imemoriais e que têm uma grande carga ritual em termos de crenças populares e mesmo magia.
Tapete berbere. Autor desconhecido
“É possível associar a sua interpretação, como propõe André Leroi-Gourhan, aos frescos animalescos da pré-história, constituídos por ‘mitogramas’ comparáveis às imagens de uma banda desenhada”. (CHRONIQUESALGERIENNES, 2016, página electrónica citada)
Os elementos utilizados nas tapeçarias têm geralmente origem na simbologia sexual, sobretudo feminina, como o símbolo X, que representa o corpo feminino aberto, prestes a conceber, o V invertido representa a mulher de pernas abertas, o losango que representa o útero ou o ventre da mãe. Os símbolos masculinos, menos frequentes, enquadram geralmente os símbolos femininos e são representados por desenhos de escadas, pentes de três dentes, espinhas de peixe (associados ao número 3, e como tal representados geralmente em número de 3) e a serpente, símbolo fálico por excelência de toda a área do Mediterrâneo. A cruz representa o acto sexual e dois losangos intersectados representam o nascimento. (CHRONIQUESALGERIENNES, 2016, página electrónica citada)
Mulheres Ait Hadiddou. Autor desconhecido
As tatuagens têm vários objectivos, como indicar a tribo a que a mulher pertence, protege-la do mau-olhado e das doenças, proteger determinada zona do corpo, aumentar a sua fertilidade e realçar a sua beleza. As tatuagens são realizadas com recurso a um espinho de cacto ou de rosa e são utilizados como corantes várias plantas mascadas, como folhas de favas, grãos de trigo e cogumelos, fixadas posteriormente com cinzas misturadas com óleo. A simbologia dos motivos é menos rigorosa que nas tapeçarias, mas existem alguns utilizados de forma recorrente e com o mesmo significado _ o ponto representa o centro da casa, o crescente da lua o processo de nascimento, vida e morte, a espiral representa a harmonia eterna, o círculo representa o absoluto, a palmeira a deusa-mãe, dois traços a dualidade entre o bem e o mal, o quadrado representa a casa, dois quadrados sobrepostos a luta entre o bem e o mal, uma rosácea formada por triângulos com o vértice para cima significa o fogo e a virilidade, enquanto que se o vértice for virado para baixo significa a água e a feminidade. (CHRONIQUESALGERIENNES, 2016, página electrónica citada)
As tatuagens são também um elemento de ligação entre o corpo humano e o mundo dos espíritos, sendo utilizadas não só nas mulheres, pelos motivos anteriormente referido, como nas crianças para que tenham sorte na vida.
No entanto, a maioria das tatuagens são condenadas pelos religiosos islâmicos conservadores, que as consideram uma mutilação e um pecado, excepto as de carácter temporário, como as realizadas com o henna, e ligadas a cerimónias como o casamento, o nascimento, a circuncisão ou a morte. (FOX, 2014, página electrónica citada)
Tatuagem com henna
O reconhecimento do amazigh enquanto elemento fundamental da identidade de Marrocos foi sempre uma questão delicada e controversa, já que para a generalidade das autoridades constitui um factor de desunião e de negação da arabidade do país.
“Os governos e os partidos políticos, em perfeito conluio, têm uma mesma posição face ao ensino do amazigh: a negação. A língua ‘própria’, não reconhecida, é tanto marginalizada, como excluída, por força das circunstâncias, de todas as facetas da vida pública. Nas instituições judiciais, escolares e mediáticas, a amaziguidade é vista como uma parte ‘estrangeira’ da identidade marroquina, o seu lugar é evidentemente o de não ‘defendida’, não ‘marcada’ e não ‘mostrada’.” (BANHAKEIA e FARHAD, 2006, obra citada)
Os próprios islamistas vêm na afirmação do movimento berbere “um esforço ocidental para fragmentar o Islão. Reconhecer o Tamazight como língua oficial seria uma blasfémia para o Corão e Alá.” (GUERRA, 2009, p. 226, citando B. Weitzman)
Homens Ait Khebbach de Merzougha
No final do século passado, concretamente entre os anos de 1991 e 1994 ocorreram vários movimentos activistas berberes, que exigiam o reconhecimento do tamazight como língua oficial. (GUERRA, 2009, p. 224)
O Rei Hassan II deu sinais de mudança, em 1994, no seu discurso Necessidade de preservar o tamazight e de o ensinar pelo menos na primária, situação que seria institucionalizada no ano seguinte. “O Rei Hassan, defensor do berbere enquanto parte integrante da identidade marroquina, emitiu em 1995 um decreto real autorizando as mudanças curriculares que permitissem o ensino da língua berbere nas escolas públicas.” (GUERRA, 2009, p. 225)
O ano de 2000 fica marcado pela elaboração do Manifesto Berbere, escrito por Mohammed Chafik, que recolheu 1.000.000 de assinaturas, exigindo o reconhecimento do tamazight e da importância dos berberes na consolidação do Estado Marroquino. “O Manifesto tem o cuidado de incluir no seu final uma nota explicativa das suas intenções para evitar dúvidas ou interpretações tendenciosas. Nessa nota faz-se uma chamada de atenção para o facto de que, enquanto berberes, os subscritores do Manifesto consideram-se irmãos dos árabes e parte de uma mesma Nação, e acreditando que a diversidade é enriquecedora, têm consciência da necessidade de uniformização.” (GUERRA, 2009, p. 226)
Em 2001, o Rei Mohamed VI abre novas perspectivas no discurso Inserção do tamazight no sistema educativo nacional. Nesse mesmo ano o Monarca fundou o Instituto Real da Cultura Amazigh, com o objectivo de promover a cultura e o desenvolvimento da língua amazigh. O tamazight foi reconhecido como uma das línguas oficiais de Marrocos e o tifinagh foi adoptado como alfabeto para o transcrever. (BANHAKEIA e FARHAD, 2006, obra citada)
Na floresta de cedros do Médio Atlas
A implementação desta medida é complexa e difícil e os resultados são criticados por muitos. Para além dos problemas da falta de professores com formação e de manuais adequados, existem os relativos ao facto de os falantes do tamazight serem maioritariamente rurais, de existirem em Marrocos três dialectos completamente distintos e de o seu ensino não dispor dos mesmos meios de que dispõe o do árabe ou o do francês.
No primeiro ano, 2003-2004 o ensino foi introduzido em 317 escolas, número que aumentou dois anos depois para 1.200, cobrindo 48.000 dos 4.000.000 de alunos da primária. 52% dos estabelecimentos leccionava o tamazight do Médio Atlas, 31% o tachelhit e 17% o tarifit. (BANHAKEIA e FARHAD, 2006, obra citada)
No ano lectivo de 2007-2008 o estudo do tamazight chega às universidades de Agadir e Oujda e no ano seguinte à de Fez. Apesar de nos meios académicos se considerar que o ensino do tamazight em Marrocos é feito com hesitação, improviso e ambiguidade, “a questão do ensino do amazighe é tributária essencialmente de uma vontade política afirmada à partida. A esse propósito, um sinal muito positivo é prenúncio dessa vontade. Assim, o estatuto de língua oficial do amazighe ao lado do árabe, reconhecido pela nova constituição de Marrocos adoptada por referendo no 1º de Julho de 2011, é um acontecimento político maior que traz grandes esperanças e inaugurador de um novo capítulo na história do ensino da língua amazighe. Com efeito, nas mais altas instâncias do estado, podemos dizer que um consenso nacional emergiu em relação ao reconhecimento da língua amazighe desde logo como língua nacional de identidade cultural e social e seguidamente, como língua oficial que deve integrar todos os domínios da vida social. Este reconhecimento político oficial é a condição ‘sine qua non’ para que o amazighe encontre enfim um direito de cidadania”. (JARMOUNI, 2012, obra citada)
Outros sinais confirmam esta realidade, como a existência de um canal de televisão estatal em língua tamazight, incluindo legendagem de séries com sub-títulos em tifinagh.
Mulher amazigh. Autor desconhecido
Estima-se que em Marrocos o número de berberes (ou falantes dos dialectos tamazight) atinja os 20 milhões, ou 60% da população. Este número não é consensual, já que autores como Frédéric Deroche o coloca entre os 10 e 12 milhões, ou seja, 40% da população. (WIKIPEDIA, 2016.08.22, página electrónica citada)
No entanto, os estudos mais recentes, genéticos, antropológicos ou linguísticos revelam uma realidade curiosa, que é a de que a grande maioria dos Norte-Africanos actuais, sejam arabófonos ou berberófonos descendem geneticamente dos berberes. Nesta perspectiva, apesar de apenas metade da população de Marrocos falar o tamazight, a esmagadora maioria descende geneticamente dos berberes.
Existem vários autores para quem esta realidade é mais profunda do que pode parecer à primeira vista, como Samira Sitail, que afirma:
“Marrocos não é um país árabe (…) Somos um país magrebino. Historicamente, observamos as nossas origens berberes, todas as nossas confluências, as influências que vivemos. Somos um país magrebino e temos que assumir uma vez mais e que isso seja o objecto de uma força, de um orgulho e não o objecto de debates totalmente inúteis”. (SITAIL, 2016, página electrónica citada)
cara, vcs me ajudaram muito num trabalho de escola. Valeu
Caro Lucas. Vcs é só uma pessoa: o autor deste blogue. Cumprimentos
Obrigada por toda esta informação e conhecimento.Tenho pesquisado na internet por artigos relacionados com este tema dos Imazighen mas existe pouca informação… estive em Marrocos em Junho e fiquei apaixonada pela cultura e pelas paisagens. Fiquei com o contacto de um amigo que conheci em Merzouga que me levou ao deserto e que foi das melhores experiências da minha vida! Falamos todos os dias . Noto que existe realmente uma maneira diferente de viver a vida ….conhece lo a ele e aos colegas fez me mudar a minha maneira de pensar em alguns assuntos. Como posso saber mais sobre este “povo” ? Quero lá voltar em breve e conseguir integrar me o melhor possível.
Continue o excelente trabalho.
Ana Margarida
Obrigado pelo seu comentário.
No menu deste blog, nas “fontes”, tem uma vasta bibliografia que pode consultar.
Cumprimentos
Depois de visitar o Marrocos em Maio de 2018, confesso que fiquei apaixonada por este pequeno Pais e de identidade cultural tao Grande. Neste site encontrei inumeras respostas para entender a cultura tao enriquecedora dos povos Berberes do Marrocos o qual aprendi a Amar, Respeitar e Admirar atravez de suas obras.
Parabens , aos que aqui contribuiram.
Mig / Brasil
Obrigado pelas suas palavras. Este site é um blog pessoal, de um só autor. Os contributos são a experiência de vivência no País e as fontes consultadas.
Marrocos. Um mosaico de culturas e identidades que lhe confere essa riqueza de que fala
Só hoje acabei a leitura desta excelente recolha e trabalho seu sobre este povo magnífico e as origens de sua cultura antiquíssima e genuína como são os berberes. Que pena eu não ter estes conhecimentos no (pouco) conviver com eles que tive, que melhor proveito teria tirado desse conviver tão escasso mas inesquecível !
Interessante conhecer, tanto com que enriquecerrmos espiritualmente o nosso pertencer a esta humanidade de culturas tão diferentes e tão grandiosas e fascinantes !
Por esta hora aqui a fugir de outros que-fazeres, agradeço-lhe , Frederico M.Paula, este renovar de energias e como sempre felicito-o cordialmente.
Isabel Maria de G. Falcão
Eu é que agradeço o seu comentário. O tema dos Imazighen ou Berberes é fascinante e envolto em mistérios e ligações por vezes surpreendentes. Felizmente que em Marrocos cada vez mais existe a consciência da sua importância na identidade do País e a sua cultura, língua e costumes estão cada vez mais presentes no quotidiano da sociedade marroquina.
Frederico eu gostaria da sua ajuda para entender mais sobre esse povo. Vc poderia me ajudar?
Ajudarei com certeza naquilo que puder