A Skala de Essaouira
“Cuidado, senão Aïcha Kandicha vem-te buscar!”
Nos tempos da ocupação da costa de Marrocos pelos portugueses, há notícias do aparecimento nas Praças-Fortes de uma mulher misteriosa e extremamente bela, que seduzia, enfeitiçava e matava os homens com quem se cruzava. Essa mulher chamava-se Aicha Kandicha, a Condessa.
Condessa portuguesa ou moura encantada, Aicha tornou-se uma lenda e hoje faz parte do imaginário marroquino, como um demónio feminino que persegue e enlouquece os homens que andam sós na escuridão e castiga as crianças mal comportadas.
Esta figura de mulher imortal e demoníaca, uma Vénus com pés de camelo que atemoriza o imaginário da população, é objecto de culto em confrarias sufistas, que lhe pedem protecção contra os jnuns, espíritos maléficos, a invocam em transes e sessões de exorcismo. As moqqadema, mulheres com poderes curativos sobrenaturais, encarnam o seu espírito para dar respostas aos problemas dos seus pacientes.
Mulher na Skala da Casbah de Essaouira
Aicha Kandicha era uma condessa portuguesa que se apaixonou por um rico comerciante de Safim, para onde foi com o objectivo de se casar com ele. Não se sabe se o casamento foi consumado ou se foi rejeitada, mas a Condessa converteu-se ao Islão e tomou o nome de Aicha, tendo por hábito passear-se só durante a noite, sem véu e vestida de branco, seduzindo e enlouquecendo os homens que se cruzavam com ela. O nome Kandicha é assim a adaptação de Condessa à Darija marroquina, ou dialecto Árabe falado em Marrocos.
Outra versão é a de que Aicha era uma jovem berbere que viva com a sua família na zona de Jorf Lasfar, nos arredores de Mazagão. Os portugueses teriam exterminado a sua tribo e violado Aicha, que passou a utilizar a sua beleza para seduzir os soldados e os atrair para emboscadas. O mito da mulher demoníaca teria, nesta versão, sido construído pelos próprios portugueses para atemorizar e por de sobreaviso os seus soldados. É também frequente considerar-se Aicha como uma guerrilheira amazigh, líder de um grupo organizado armado que, refugiado nas montanhas e florestas, organizava ataques contra o ocupante português.
A história de Aicha guerrilheira contra o invasor colonialista é recriada pelo grande poeta marroquino Tahar Ben Jelloun, que a apresenta como uma personagem real, uma mulher da cidade de Essaouira que travou nas montanhas do Atlas uma guerra implacável contra os franceses durante o período do protectorado.
Samira Douider identifica Aicha Kandicha com a personagem Harrouda do romance de Tahar Ben Jelloun, transcrevendo esta passagem da sua obra:
“Mulher com idade imutável, ex-sereia do Mediterrâneo, viúva do Ogre de Fass, amante da aranha Kandisha…procura companheiro e cúmplice para libertar um território, tirar as mulheres do harém de Moulay Idriss e amestrar os pássaros no pequeno souk”. (DOUIDER, 2012, p. 80)
Samira Douider afirma que Harrouda “oscila entre a figura da mãe e da prostituta, entre a sacerdotisa e o demónio (…) associada ao mundo da noite e da sexualidade, encarna os fantasmas da infância, já que ela simboliza a mulher para quem tudo é possível”. (DOUIDER, 2012, p. 80)
Apesar da profundidade do trabalho de Douider, que indica as várias designações que são atribuídas a Aicha, seja Kandicha, Quendicha, Lalla Aicha (Senhora Aicha), Aicha Soudaniyya (pela sua relação com o Sudão, país de onde também seria supostamente originária) ou Aicha L’Ganaouia (pela sua ligação aos Gnaoua), a autora refere também o termo Aicha la Contessa, dizendo que tem origem no espanhol, que é, em nossa opinião completamente errado, já que a origem está no termo português Condessa, como aliás defende Othmane Mansouri, ao afirmar que “a lenda de Aicha Kandicha, a Condessa em português, é também herdeira da presença portuguesa. Ela conta que uma Jinn, uma mulher muito bela, seduzia os soldados portugueses para os atrair em emboscadas e os matar”. (CHAUDIER, 2011, página electrónica citada)
Mustapha Qadery, investigador da Universidade de Rabat, refere no entanto que kendicha significa colérica na Língua Tamazight.
Mulheres no Rochedo do Diabo
A figura de Aicha não é apenas uma lenda, já que tem um papel moralizador em termos sociais, incutindo nos homens o temor de sair à noite e o medo das consequências do adultério. “Aquele que se deitar com ela sem ter descoberto a sua identidade ou sem estar protegido cravando um punhal no chão, fica votado ao celibato ou, se for casado, terá a sua vida conjugal marcada pela discórdia, impotência, doença, esterilidade.” (BLOGUE LNO, 2008, página electrónica citada)
É também uma figura que exprime recalcamentos e fantasmas masculinos, ligados à figura da mãe dominadora e castradora, da irmã mais velha ou da mulher emancipada. É o mito da mulher ardente, da amante ideal que deseja e que procura o prazer. Para as mulheres, Aicha simboliza a rival invisível. é também uma espécie de papão que castiga as crianças mal comportadas.
Mas para o senso comum Aicha é sobretudo um demónio feminino, sedutor, enfeitiçador, que enlouquece, mata e devora as suas vítimas.
“Sou eu…vou assombrar os teus sonhos e sufocar a tua respiração…vou-te seguir como a tua sombra, tu me ouvirás cochichar aos teus ouvidos e comigo verás todas as cores…eu nunca te abandonarei até que enlouqueças!” (BLOGUE LNO, 2008, página electrónica citada)
A imagem de Aicha altera-se de acordo as várias regiões. Junto à costa é uma sereia, no interior do país é um demónio com patas de camelo, sendo também comum atribuir-lhe patas de cabra, de burro ou de galinha. A sua beleza está de acordo com o ideal de beleza marroquino _ “Tem a pele duma brancura incrível, olhos com forma de amêndoa, boca cor de sangue e cabelos negros, sedosos, soltos até às ancas”. (BLOGUE LNO, 2008, página electrónica citada)
Sobre a origem da lenda de Aicha, Abderrazzak El Qarouni considera que “a explicação mais aceitável é a que o antropólogo americano Vincent Crapanzano avança. Ele afirma que o nome de Aicha Kandicha deriva de Quedecha, uma deusa cananeia cujo culto foi introduzido em Marrocos pelos primeiros invasores fenícios.” E acrescenta que “a figura deste demónio feminino se encontra mal definida e constitui uma controvérsia na demonologia marroquina.” (EL QAROUNI, 2013, página electrónica citada)
As suas vítimas apresentam sinais característicos comuns, como deixarem crescer os cabelos e as unhas, e não se conseguirem libertar do seu feitiço sem se submeterem a um exorcismo ou lhe apresentarem directamente um objecto metálico. O perfume jaoui lakhal, a música hadra e as cores negra e vermelha são da sua preferência. (EL QAROUNI, 2013, página electrónica citada)
As moqqadema, videntes com poderes curativos, encarnam o espírito de Aicha em sessões de transe para resolver os problemas dos seus pacientes.
Músicos Gnawa. foto Alain Joquet
O culto de Aicha está particularmente enraizado na região de Marraquexe, no seio das confrarias Gnawa ou Gnaoua, e as suas histórias são contadas nas halkas (rodas, ajuntamentos em forma de circulo) da Praça Jemaa El Fna.
Os Gnawa são descendentes dos escravos trazidos da Africa subsariana pelos Árabes e Berberes para integrar os seus exércitos e trabalharem na construção das suas cidades. O termo gnawa deriva do tachelhit (tamazight falado pelos chleuh) ignawa, que significa mudo. São arabófonos e praticam o Islão Sufi, organizando-se em confrarias místicas sufis muçulmanas. Usam a sua música, cantos e danças para atingirem um estado de transe, utilizando para tal um movimento circular com a cabeça, comparável à famosa dança dos dervixes rodopiantes.
São conhecidos pela sua derdeba, ritual ancestral praticado à noite “visando transformar uma possessão mórbida por uma possessão controlada. Durante a cerimónia, são invocados diversos espíritos ligados às cores, santos venerados pelas confrarias sufis marroquinas e entidades femininas”. (BLOGUE LNO, 2008, página electrónica citada)
“Ó Aicha! Levanta-te e coloca-te ao Serviço de Allah e do Profeta.
Ó Senhor! Saudações ao Profeta. Benvinda, Ó Lalla Aicha!
O altar está preparado. Ó Lalla Aicha! Ó Gnawiya!
Bem-vinda, Ó Filha do Rio. Allah! Allah! Lalla Aicha.
Ela veio! Ela veio! Ela veio! Lalla Aicha.”
(CRAPANZANO, 2000, p. 231)
Para os Gnaoua, são diversos os nomes com os quais Aicha é apelidada _ Aicha Kandicha, Aicha Soudaniya (do Sudão), Aicha Gnawiya, Lalla Aicha (Senhora Aicha) ou Lmqadma (a primeira, a que está à frente).
O mito de Aicha influenciou inclusivamente o dialecto da cidade de Marraquexe, por exemplo, na criação do adjectivo mkandech, que significa triste ou pessimista, ou na expressão dayra ki Aicha Kandicha, ou ela parece a Aicha Kandicha, para designar uma mulher feia ou desmazelada. (EL QAROUNI, 2013, página electrónica citada)
Interior da Zawia de Moulay Idriss
Outra confraria sufi que invoca Aicha Kandicha nos seus rituais iniciáticos é a dos Hmadcha, que a veneram e chamam a nossa mãe, para curar a possessão pelos jnuns.
Esta confraria ou Tariqa, palavra que significa via, caminho, doutrina ou método, está sediada no Monte Zerhoun, junto da cidade de Moulay Idriss, onde se encontra o mausoléu de Sidi Ali Ben Hamdouch, seu fundador. Na região existem vários locais para o culto de Aicha, como grutas e fontes, o mais conhecido dos quais é a gruta de Ben Rachid ou de Zerhoun.
Há quem defenda que na realidade Aicha era irmã de Sidi Ali Ben Hamdouch, outros que era filha do Rei do Sudão e veio para a região do Zerhoun para se casar com Sidi Ali e que despareceu após a morte deste, daí a designação Aicha Soudaniya. Vincent Crapanzano defende que Aicha é mulher de um demónio chamado Hamou Qiyou, que não deverá ser confundido com o famoso demónio Hamou Lahmar, o vermelho, que vive nos matadouros, também apelidado de Sidi Hamou ou Bábá (papá). (EL QAROUNI, 2013, página electrónica citada)
Mulheres na Cisterna Manuelina da Cidadela Portuguesa de Mazagão
Vincent Crapanzano encontrou um jovem musico no Festival Gnawa de Essaouira que lhe disse o seguinte a propósito das músicas que os Gnawa, os Hamadcha, os Issawa e outras ordens religiosas:
“É perigoso, disse ele. Eles, os músicos, não sabem o que fazem. A sua música perdeu a sua pureza, e os outros, os invisíveis (os jnun, os espíritos, os demónios) vão ficar em cólera e atacar um dia, quando menos se esperar.” (CRAPANZANO, 2000, p. 15)
O tema de Aicha Kandicha parece ser inesgotável e controverso, como refere El Qarouni. “Seja o que for que se diga, Aicha Kandicha fica como uma figura indescritível e enigmática do nosso património cultural oral. Ela será sempre um tema de actualidade e controvérsia que alimentará especulações fantasistas e povoará o nosso imaginário popular colectivo.” (EL QAROUNI, 2013, página electrónica citada)
Para nós, portugueses, fica a ideia de que a nossa presença em Marrocos desperta nesse país tanta curiosidade e mistério como Marrocos desperta em nós, como mostra a história desta portuguesa encantada, seja ela a Condessa de Mazagão, de Safim ou de Arzila.
Aicha Conticha
“A armada deixa Arzila. Sobre as naus
Brilham uma última vez as armas portuguesas
Quando os moiros chegarem verão apenas
Uma mulher de negro pelas ruas
Não resta mais de Portugal, só este luto
Na cidade deserta e abandonada.
Talvez um amor antigo ou um morto querido
Talvez a luz, o branco, o sul,
Talvez o puro prazer de olhar.
Outros amaram Arzila mas não tanto
Que tivessem de ficar só por amor.
Ela só quiz Arzila por Arzila.
Os moiros lhe chamarão Aicha Conticha
E enquanto a armada se despede lentamente
Ela só é senhora da cidade.
De negro está vestida
Ela só na cidade abandonada
E nunca mais Arzila será perdida
E nunca mais Arzila será tomada.”
Excelente texto, aproveitei inspiração para uma passagem no meu livro “1494 Tordesilhas”. parabens por este blogue…
Obrigado
Muito interessante e já agora parabéns pela página e artigos, felicito a recolha e o amor a cada tópico. Este é de facto um site e uma riqueza de recolha que se pode ler durante dias a fio. Esta lenda em particular lembrou-me sobretudo a lenda da Floripes de Olhão, que nalgumas interpretações é bastante morena (há recolhas em que não o é, mas aí aponto apenas para os prováveis ideais de beleza de quem conta as histórias e também ao facto de existir genética loira também fora da esfera europeia). Outro facto sobre a Floripes: quer retornar a Marrocos, muito similar a esta Aicha em que em várias representações, quer retornar a Portugal, ou representa um “país perdido”. Outra similaridade é este aspecto mais vampiresco e de “femme fatale” por assim dizer, da Floripes, que nesta Aicha também se compõe. O próprio tom de pessimismo e “cumprir o fado” que surge faz-me lembrar bastante a lenda, mais coisa menos coisa conforme as lendas.
Já se tem falado da origem das ‘moiras’ relativa aos povos indo-europeus a norte e interior, mas penso que a sul e em locais de postos comerciais e de litoral, as influências seriam obviamente bem diferentes pela história dos locais – sempre muito mais mediterrânicas em épocas anteriores ao cristianismo e islão. Esta Aicha ter ainda para mais origem fenícia é também algo muito curioso…
Pergunto-me quantas mais semelhanças não haverá entre lendas portuguesas e marroquinas, berberes ou do magreb? Prova viva das interacções e trocas entre povos…
Fantástico!
Agradeço as suas palavras sobre o blogue.
Em relação à lenda da Floripes de Olhão, cujo texto nunca li, é frequente apontarem essa semelhança.
A Aicha Kandicha, apesar da origem Fenícia, é uma personagem adoptada em várias situações. Desde os portugueses com o propósito de incutir o medo nos soldados e pô-los de sobreaviso, ao próprio Tahar Benjelloun, que a enaltece como guerrilheira da luta anti-colonial.
Hoje em Marrocos podemos dizer que se encontra enraizada na demonologia popular, como figura moralizadora, sobretudo do adultério masculino e das relações pré-nupciais, mas também na religião de dois grupos específicos em que é adorada e a quem é pedida protecção _ os Gnaoua de Marraquexe e a comunidade Sufi Hamadcha do Zerhoun.
O assunto dava para muita conversa, mas o que é interessante é que muita gente em Marrocos prefere não falar sobre o tema…
Estou muito feliz por haver uma página contendo tantas informações sobre os povos árabes.Gostaria muito de trabalhar com esse tema na minha monografia, pois, sempre tive um respeito muito grande por essa cultura muito rica e que influenciou a todos nós.
Naquilo em que a puder ajudar, pode contar comigo. Cumprimentos
Me parece una magnífica página para los que nos dedicamos a “cosas” de Marruecos. Espero que dure mucho.
Gracias
Muito interessante!
Um tema que é tabu para muitos marroquinos