Shiprock, no Novo México . foto Kerry Slavens
“Na Primavera de 1539, um negro corpulento jaz mortalmente ferido por flechas Zuni na aldeia de Hawikuh, no Noroeste do actual estado norte-americano do Novo Mexico. Se rezasse durante o seu último suspiro, seguramente que invocaria o nome de Allah”. (CUSHING e FLINT, 2004, obra citada)
Hawikuh era um dos maiores aglomerados de entre os “Zuni pueblos” durante o período da chamada “entrada espanhola”, que os conquistadores espanhóis julgavam ser uma das famosas “Sete Cidades do Ouro” ou “Sete Cidades de Cíbola”, o El Dourado.
E este homem, considerado o primeiro africano a visitar a América, chamava-se Estêvão, e vivera uma aventura extraordinária desde que fora vendido como escravo, vinte e seis anos antes, na Praça portuguesa de Azamor.
A frente de rio de Azamor num postal antigo
De nome original Mustafa, conhecido como Mustafa Zemmouri, nasceu em 1500 e chegou a Azamor com treze anos de idade, onde foi vendido como escravo. Não se sabe se Mustafa foi trazido da Africa subsariana por negreiros portugueses ou árabes, ou se foi um dos Zemmouris “arrebanhados” pelos portugueses nos arredores da cidade.
Mustafa ou Estêvão, nome próprio que os portugueses lhe deram pela similaridade fonética entre os dois, viveu em Azamor até completar vinte anos, altura em que foi levado para Portugal, e de Portugal para um qualquer mercado de escravos de Sevilha ou de Salamanca, com referem vários autores, onde foi vendido a um nobre espanhol de Béjar del Castañar, chamado Andrés Dorantes de Carranza. A partir desta altura passa a ser conhecido por Estevan ou Esteban, sendo também chamado de Estevanico ou Estebanico, e Estêvão “o negro” ou Estêvão “o mouro”. Após a sua compra por Dorantes passou também a chamar-se Estêvão de Dorantes, adoptando o apelido do seu proprietário, situação que era comum durante a escravatura.
Apesar de muçulmano e arabizado, Estêvão era culto e falava várias línguas, entre as quais o árabe, o português e o castelhano, facto que indicia que muito provavelmente terá sempre frequentado casas de gente abastada.
A chegada de Pánfilo de Narváez a Tampa Bay
Em 1527 acompanha Andrés Dorantes na falhada expedição de Pánfilo de Narváez ao continente americano, para colonizar a Florida e a costa do Golfo do México.
Pánfilo de Narváez, figura temível com os seus cabelos ruivos e um só olho, era um veterano das guerras do Novo Mundo, tendo participado anteriormente na conquista da ilha de Cuba e da Nova Espanha (actual Mexico). As cinco caravelas que compunham a expedição, que integrava 600 homens, umas poucas mulheres, alguns religiosos e umas dezenas de cavalos, saiu do porto de Sanlúcar de Barrameda no dia 17 de Junho. A viagem é relatada por Álvar Nuñez Cabeça de Vaca, tesoureiro e cronista oficial.
Quando a expedição parte de Cuba, onde fez escala, já tinha perdido 200 homens, entre desertores e doentes. A primeira paragem no continente americano é em Tampa Bay, no dia 1 de Maio de 1528, onde Narváez toma oficialmente posse de “La Florida”, e onde decide fazer uma incursão por terra até à zona da actual cidade de Tallahassee, levando consigo 300 homens e enviando as suas caravelas com os restantes 100 por barco para Pánuco, na costa mexicana.
Narváez pensava que os índios Timicuan, habitantes do Norte da Florida eram ricos em ouro, mas enganou-se. Tudo o que encontrou em Tallahassee foram algumas tendas, uns poucos campos de milho, muitas doenças e emboscadas.
Após sofrerem pesadas baixas, os sobreviventes espanhóis decidem no dia 4 de Agosto regressar à costa, chegando a Apalachee Bay no dia 22 de Setembro, onde os últimos 45 homens constroem 5 barcos para tentar juntar-se aos seus companheiros em Pánuco.
A viagem de Estêvão de Azamor pelo Novo Mundo. fonte BAYOD, 2007
Escreveu Cabeça de Vaca na sua crónica, quando ficou encarregue de tomar o leme de uma das embarcações:
“Tão grandes eram as nossas dificuldades, já que fomos forçados a ir para um mar tão adverso sem termos connosco ninguém que soubesse da arte de navegar”. (MORSE e OWEN, 2002, obra citada)
As correntes empurraram-nos para oeste, tendo dois dos barcos, incluindo o de Narváez, sido atirados para o mar alto e nunca mais foram vistos. No dia 6 de Novembro de 1528, os últimos 15 sobreviventes chegaram ao local da actual cidade de Galveston, onde foram aprisionados por índios e dispersos por várias tribos. Estêvão, o seu amo Dorantes, Cabeça de Vaca e um outro espanhol de nome Alonso del Castillo Maldonado ficaram juntos no seu cativeiro.
Conta Cabeça de Vaca que a sua salvação foi terem ajudado os índios a curar algumas febres e outras maleitas, o que lhes valeu a alcunha de “filhos do sol”. Nesta altura Estêvão ganha grande preponderância no seio do grupo, sendo ele o elemento de contacto com os nativos, tendo inclusivamente aprendido 6 dialectos índios. Revela-se também como um sedutor incorrigível, procurando sempre que possível ganhar os prazeres das mulheres índias em troca dos seus favores.
“Disfrutávamos de uma considerável autoridade e dignidade entre os índios, e para isso pouco falávamos com eles. O homem negro era quem falava com eles, procurando determinar como devíamos agir e recolhendo outras informações importantes”. (MORSE e OWEN, 2002, obra citada)
Com o passar do tempo, Estêvão torna-se numa figura impressionante, completamente “indianizado”, usando ornamentos dos nativos, como as penas, e pintando-se à sua maneira.
Máscara funerária . Museo del Oro, Bogotá
Essas tais “informações importantes” prendiam-se com o famoso Eldourado, concretamente com as “Sete Cidades do Ouro” ou “Sete Cidades de Cíbola”, cuja busca marcou invariavelmente as expedições integradas na conquista espanhola do Novo Mundo.
“O mito das Sete Cidades de Ouro originou-se por volta do ano 1150 quando os mouros conquistaram Mérida, na Espanha. De acordo com a lenda, sete bispos abandonaram a cidade, não só para salvar suas próprias vidas como também para prevenir os muçulmanos de obterem relíquias sagradas religiosas. Anos depois, um boato circulou que, em uma terra distante – um local desconhecido para as pessoas da época-, os sete bispos haviam fundado as cidades de Cíbola e Quivira. A lenda diz que ambas enriqueceram-se muito, principalmente graças a pedras preciosas e ouro. Por isso, muitas expedições foram organizadas em busca das cidades ao longo dos séculos.” (ROMANZOTI, 2012, obra citada)
A mesma lenda existe na tradição portuguesa, mas em vez dos sete bispos de Mérida, relata que o Arcebispo do Porto terá fugido para o Novo Mundo, fundando sete cidades _ Aira, Anhuib, Ansalli, Ansesseli, Ansodi, Ansolli e Com, que acumularam grandes riquezas.
Mapa de parte da America do Norte, de 1587, da autoria de Joan Martines, com a representação das “Sete Cidades de Cíbola”
Os quatro “conquistadores” estiveram prisioneiro até ao dia 15 de Setembro de 1534, dia em que aproveitaram a distração dos índios e conseguiram escapar. Durante os dois anos que se seguiram continuaram a viver no seio das comunidades índias, “vagabundeando” de local em local, exercendo a sua medicina improvisada. O seu regresso ao seio dos espanhóis dá-se quando encontraram um grupo de soldados que os levaram para a cidade do México, onde forma recebidos com pompa e circunstância pelo Vice-rei da Nova Espanha, António de Mendoza.
Estêvão adquire então, temporariamente, uma certa liberdade de movimentos, tornando-se numa figura “carismática” das ruas da cidade do México, um “habitué” dos ambientes boémios e de prazer. Mas a “liberdade” de Estêvão foi sol de pouca dura. O Vice-rei Mendoza, apercebendo-se dos seus conhecimentos das línguas nativas e da geografia dos territórios do Norte, compra o escravo Zemmouri a Dorantes e coloca-o ao serviço do Franciscano Marcos de Niza para integrar uma expedição em busca do Eldourado. Quanto aos seus companheiros de aventura, Dorantes, Cabeça de Vaca e Castillo, regressam a Espanha.
Hernando de Alarcon descreve a partida de Estêvão no dia 7 de Março de 1539 da cidade do Mexico, “com um séquito de mulheres índias e frades espanhóis, incluindo Frei Marcos de Niza, chefe da expedição. Estêvão usava alguns adreços como chocalhos e penas nos braços e pernas, e estava ladeado por dois galgos espanhóis”. (MORSE e OWEN, 2002, obra citada)
Reconstituição da aldeia Zuni de Hawikuh . Dennis R. Holloway Architect
Ao atingirem o território dos índios Zuni, Frei Marcos encarrega Estêvão de prosseguir o caminho com o seu séquito pessoal, e a partir daqui as únicas descrições existentes são as das lendas índias e baladas mexicanas. De acordo com essas fontes, Estêvão volta a encarnar a figura do curandeiro, deslocando-se de aldeia em aldeia exercendo a sua medicina em troca de comida e de prazeres de alcova.
Ao chegar à aldeia de Hawikuh, o chefe local nega-lhe a entrada porque Estêvão comete a “gafe” de lhe oferecer um cabaça ornamentada com penas de mocho, que para os zunis é presságio de morte. Para além disso terá exigido turquesas e mulheres em troca da sua medicina. Durante três dias permanece fora da aldeia, sem água nem comida, enquanto o conselho de anciãos discute o seu futuro. Finalmente a decisão chega. Estêvão deveria partir imediatamente ou seria morto. O negro precipita-se então, desesperado, para o rio, não resistindo mais à sede e é atingido por várias flechas zuni.
Voltamos ao início da história:
“Na Primavera de 1539, um negro corpulento jaz mortalmente ferido por flechas Zuni na aldeia de Hawikuh, no Noroeste do actual estado norte-americano do Novo Mexico. Se rezasse durante o seu último suspiro, seguramente que invocaria o nome de Allah”. (CUSHING e FLINT, 2004, obra citada)
Mas para outros autores, como Juan Francisco Maura, o final da hitória pode ter sido bastante mais feliz:
Estêvão foi recebido de braços abertos em Hawikuh e simulou a sua morte para finalmente poder viver em liberdade, no seio dos índios.
“Curiosa a história de Estêvão Mustafa Zemmouri: muçulmano convertido, escravo, explorador, náufrago, curandeiro, intérprete e grande sedutor. O seu nome é quase desconhecido na sua pátria, enquanto os seus feitos são ainda célebres nas lendas índias das margens do Colorado.” (MANGIAROTTI, obra citada)
Estêvão de Azamor, o conquistador negro
Quanto a Hawikuh, foi conquistada em 1540 por Francisco Vásquez de Coronado, onde nunca encontrou o procurado ouro. No entanto, e para quem pensa que os índios Zuni eram um povo selvagem, fica aqui esta descrição da aldeia feita por Coronado:
“Pelo que me é dado a ver, os índios veneram a água, porque ela faz crescer o milho e sustem as suas vidas. Apesar de as suas casas não serem decoradas com turquesas, nem feitas de cal e bons tijolos, são no entanto muito boas casas, com três, quatro e cinco andares, onde existem muito bons apartamentos…e algumas têm muito bons quartos subterrâneos, pavimentados, usados no Inverno, e têm casas de banho com água quente”. (“Hawikuh Ruins”, 2016)
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Artigo Muito interessante, partilhado para o minha página facebook
História desconhecida da maior parte dos portugueses, mas ainda viva no Novo México. Em Azamor, Estêvão é considerado um herói local
Muito interessante seu artigo. Como sempre rico em detalhes e de um acervo bibliográfico dos mais extraordinários possíveis. Parabéns caro amigo.
Obrigado Eduardo. Infelizmente não encontrei informações sobre a vida de Estêvão em Azamor, que afinal era o aspecto que mais me interessava.