Interior da Mesquita de Cordoba
A história do Al-Andalus desperta sentimentos e emoções apaixonadas, discussões acesas e opiniões contraditórias. E apesar de, numa visão superficial, ser uma história de antagonismos e conflitos, o Al-Andalus foi um espaço de aprendizagem de vida comunitária de várias realidades étnicas, religiosas e sociais, um espaço de convivência, de aplicação de modelos de organização social e política, de experiências espirituais, de florescimento cultural. Esta realidade esteve inclusivamente presente durante o processo de arabização da Península e também, de forma transitória, no período inicial do processo de conquista do Al-Andalus pelos Reinos Cristãos, conforme atestam inúmeros documentos da época.
Mas a realidade é que as disputas territoriais entre cristãos e muçulmanos terminaram invariavelmente com a demolição dos locais de culto de uns e outros. Inclusivamente na (erradamente) chamada “reconquista cristã”, assiste-se invariavelmente à demolição das mesquitas e construção no mesmos locais de igrejas. Mesmo nos casos em que as mesquitas eram inicialmente “purificadas” (termo usado por alguns cronistas da época) para nelas se celebrar o culto cristão, e mesmo nas situações em que a vontade era a de adaptar a antiga mesquita a igreja, a mesquita acabava por ser demolida, salvo raras excepções. E demolida porquê? Simples ódio religioso, intolerância ou violência gratuita? Ou seja, apenas por razões ideológicas?
A grande Mesquita de Córdoba é um exemplo paradigmático que pode explicar porque nem sempre a vontade de conciliação de duas realidades foi possível.
Interior da Mesquita de Cordoba
A questão das características do espaço interior é a questão central da teoria da arquitectura e da definição dos próprios estilos arquitectónicos. Aliás, é a existência de espaço interior que distingue a arquitectura das outras artes, partindo do princípio que a construção não é um acto apenas de cariz técnico. Nessa perspectiva, aquilo que define os vários estilos arquitectónicos não são os elementos decorativos que exibem, vulgo “maquilhagem” da construção, mas sim as características do seu espaço interior. Ou seja, a arquitectura não são as paredes e os telhados, mas sim o espaço habitável que estes proporcionam.
Se quiserem, podemos fazer um paralelo com um ovo. Será que o ovo é a sua casca, ou é a clara e a gema que contém no seu interior? Parece razoável para o senso comum que o ovo é de facto a parte que se come, sendo a casca apenas o seu invólucro.
Mezquita de Córdoba desde el aire. foto Toni Castillo Quero. É notória a agressividade da intrusão causada pelo “enxerto” da Catedral na Mesquita
Os conceitos espaciais da arquitectura muçulmana e da arquitectura cristã são diametralmente antagónicos.
O espaço interior da mesquita é um espaço marcado pela horizontalidade, no qual o crente, prostrado diante de Deus, se volta para Meca. O próprio termo Masjid, designação Árabe de Mesquita, deriva do verbo sajada, que significa prostrar-se. Este conceito espacial horizontal, está também relacionado com a outra designação Árabe de Mesquita, Jamaa, ou local de reunião, tendo em conta que a oração ou salat é um acto colectivo, e consequentemente o espaço em que é praticado deve poder acolher o máximo de fiéis. As mesquitas são assim edifícios com altura relativamente reduzida e área generosa, concentrando-se os elementos decorativos nas paredes, colunas e mihrab.
Ao contrário, o espaço cristão é eminentemente vertical, concebido para que o crente levante os olhos na direcção do tecto do edifício, simbolicamente contemplando o céu. As igrejas são edifícios em que a altura se sobrepõe á área e apresentam geralmente o seu tecto ricamente decorado. A verticalidade do espaço não resulta apenas das suas próprias características volumétricas, mas é acentuada pelos elementos decorativos utilizados nas zonas superiores do edifício. “Um edifício-símbolo construído para representar uma ideia, um mito que impressione, se sobreponha e domine o homem.” (ZEVI, 1977, pág. 92)
Para além disso, o espaço de culto cristão é extremamente “especializado”, no sentido em que encerra um simbolismo materializado num percurso que evoca a própria caminhada da vida. A Pia Baptismal à entrada, marcando o nascimento, a caminhada ao longo da Nave, que simboliza a vida, a transposição do Arco Triunfal, que evoca a morte e a entrada no Paraíso, Capela-Mor.
Elementos da Catedral no interior da Mesquita. A contradição é por demais evidente
A própria relação entre a arquitectura religiosa Muçulmana e Cristã com o meio urbano em que se insere é totalmente distinta. Enquanto a Mesquita se afirma através do minarete, marco urbano identificativo e local de chamamento, a Igreja impõe todo o seu volume edificado, afirmando a sua presença de forma muito mais evidente. Em Córdoba este aspecto é evidente, já que a grandiosidade da Mesquita se afirma pela área que ocupa na cidade, enquanto a Catedral se afirma pela marca que deixa na sua silhueta.
Evolução da Mesquita de Córdoba ao longo dos tempos
Construção da Mesquita de Córdoba
O início da construção da mesquita de Cordoba remonta ao século VIII, tendo ficado concluída no século X, altura em que passou a ocupar uma área de 24.000 m². Sofreu 3 ampliações durante o período Árabe, todas elas extensões em planimetria, nunca tendo sido equacionada a hipótese de, ao aumento de área, corresponder um aumento da sua altura. Apenas o minarete foi reconstruído e ampliado verticalmente.
Após a conquista de Cordoba pelo rei Fernando III de Castela no século XIII, a mesquita começou a ser utilizada como igreja. O carácter contraditório, incompatível, entre os conceitos espaciais da arquitectura muçulmana e cristã levam a que no século XVI se construa no interior da Mesquita uma Catedral, com área relativamente reduzida, mas com uma altura que não cabe na volumetria pré-existente, resultando numa “dualidade formal-volumétrica” que plasma e afirma esse paradigma.
Se no caso de Cordoba a riqueza arquitectónica da Mesquita fez prevalecer o bom senso de a não demolir, mas antes tentar adaptá-la á sua utilização como igreja, o mesmo não aconteceu com inúmeros templos muçulmanos abandonados após a conquista cristã.
Demolição da Torre Sineira da Igreja românica de Belgeard, em França
Hoje em dia, ironicamente, está a passar-se na Europa um fenómeno que faz lembrar estes acontecimentos, mas de sentido contrário. Apesar de não ter paralelo em termos políticos ou sociais, merece um comentário e eventual reflexão, pela sua gravidade ao nível da destruição de Património.
Nos últimos anos foram demolidas em França cerca de 20 igrejas do século XIII, por falta de verba para a sua recuperação e manutenção. O assunto foi bastante debatido e foram ponderadas outras utilizações para os imóveis, as quais não foram consideradas suficientemente eruditas ou dignas para serem aceites. Inclusivamente a comunidade muçulmana francesa prontificou-se a utilizar essas igrejas como mesquitas, comprometendo-se a manter e respeitar a sacralidade desses espaços.
Optou-se pela sua demolição, tendo a mesma sido apelidada por diversos sectores de “eutanásia das igrejas”. Parece que o termo suicídio, para não dizer assassínio, se aplicaria muito melhor a estas situações, já que não se tratava propriamente de edifícios em estado de saúde terminal.
Interior da Mesquita de Cordoba
Mas será que essas igrejas poderiam ser adaptadas a mesquitas, tendo em conta aquilo que foi anteriormente afirmado? Certamente que sim, e a prova está na própria arquitectura Bizantina, na qual a mesma concepção espacial tanto serve lugares de culto cristãos e muçulmanos. Apesar de dominada pela componente vertical espacial no seu centro, esta verticalidade é progressivamente reduzida para as capelas que a envolvem. São exemplos de mesquitas tão emblemáticas como Santa Sofia e a Mesquita Azul de Istambul ou a Mesquita da Cidadela de Salah Ad-Din no Cairo, adaptação dos conceitos das Basílicas Romanas a locais de culto muçulmano, ou seja, espaços marcados pela verticalidade.
Afinal, tanto Mesquita quanto Igreja acabam por ter uma função comum, a de congregar os crentes para exprimirem a sua espiritualidade.
Bibliografia:
BLOG DO FIREHEAD. http://bloguedofirehead.blogspot.pt/2013/09/onda-de-demolicoes-de-igrejas-em-franca.HTML
CHARTEDEFONTEVRAULTPROVIDENTIALISME. http://chartedefontevraultprovidentialisme.wordpress.com/2013/05/27/liste-actualisee-des-eglises-menacees-ou-demolies-sur-httppatrimoine-blog-pelerin-info/
CHRISTE ELEISON. http://www.christeeleyson.com/2013/04/comeca-na-franca-demolicao-das-igrejas.HTML
LE POINT.FR. http://www.lepoint.fr/culture/une-vague-de-demolition-d-eglises-menace-le-patrimoine-13-08-2013-1713609_3.php
“Livro do Almoxarifado de Silves (século XV)”. Câmara Municipal de Silves, 1984
PAYS DE LA LOIRE. http://pays-de-la-loire.france3.fr/2013/08/15/maine-et-loire-une-quinzaine-deglises-menacees-de-destruction-302597.html
ZEVI, Bruno. “Saber ver a Arquitectura”. Editora Arcádia, Lisboa, 1977
…” Elementos da Catedral no interior da Mesquita. A contradição é por demais evidente ”
Sim, e para mim sempre foi chocante, tb por sentir que significa a imposição da Católica , pela força e forças outras da História, sobre a rendição da grandiosidade do Al-Andaluz ….a que sinto que pertenço ( mistérios das origens nos genes ? )
adorei o conhecimento. Ainda mais que irei visitar este ano cidades da espanha.
Sevilha, Córdoba, Granada, Carmona, Ronda, Málaga, só para citar alguns exemplos da Andaluzia. Todo um mundo de uma riqueza impressionante…