Harém de ministro mouro embarca em Mazagão. postal antigo
A minha primeira ida a Marrocos aconteceu em Janeiro de 1976 e posso afirmar que o meu coração ficou por lá. Não sei se pelo fascínio que o país exerceu sobre mim, se por alguma identificação inconsciente sentida, ou se por algum despertar da memória de uma anterior vida passada do lado de lá do Estreito.
Aliás, parece ponto assente que Marrocos é tudo menos indiferente ao olhar da maioria dos portugueses que o visitam, suscitando sentimentos apaixonados, muitas vezes de sinal contrário, e assim foi desde tempos recuados.
Esta constatação é notória na obra “A imagem de Marrocos nos relatos de viagens dos Portugueses (1870-1996)”, uma compilação de textos de viajantes portugueses a este país do Norte de África, da autoria de Abdelmouneim Bounou, publicada pela Universidade Sidi Mohammed Ben-Abdellah de Fez em 1998. Nestes textos é patente o fascínio que Marrocos exerce nos viajantes portugueses, os sentimentos que neles desperta, o mistério que encerra. De entre todos, o texto de Ruy da Câmara “Contrastes entre Europeus e Mouros”, que de seguida se transcreve, ressalta pela forma como as diferenças que o viajante encontra no país que vai descobrindo são de tal forma surpreendentes, que o autor termina com a frase “Tal é este originalíssimo país. Tal é esta originalíssima civilização!” (CÂMARA, 1879, pág. 301)
Casamento
Aliás a obra de Ruy da Câmara intitulada “Viagens em Marrocos”, da qual o referido texto é integralmente transcrito, é um documento interessantíssimo que aborda variadíssimos aspectos da vida do país nos finais do século XIX, numa altura em que viajar era uma aventura, em que as distâncias eram bastante mais longas do que hoje e em que a influência dos media não tinha uniformizado muita da vida comunitária e o turismo não tinha descaracterizado, senão destruído, muito do património e tradições.
Desde 1976 voltei a Marrocos várias dezenas de vezes, e ao longo destes anos procurei ser um aprendiz desta realidade complexa, que é a da interacção entre estas duas culturas, tão distintas e tão semelhantes. Afinal o árabe e o português têm um passado de encontros e desencontros, de semelhanças e contrastes, de amores e ódios. Uma história de relacionamentos marcados pela incompreensão, pela curiosidade e pelo mistério, aspectos presentes no próprio texto de Ruy da Câmara.
Comerciante na sua loja
Contrastes entre Europeus e Mouros
“Conserva esta raça, apesar de separada do continente por um estreito braço de mar, os costumes, os trajes, os traços da sua fisionomia como nos primeiros tempos: por aqui se verá quão diferente é em tudo dos nossos hábitos:
O europeu monta pela esquerda e com estribos compridos; o mouro pela direita e com estribos muito curtos.
O europeu ferra os seus cavalos com ferraduras abertas; o mouro com ferraduras fechadas, afectando a forma de boca de cântaro.
O europeu monta em selim raso e leve; o mouro em selas pesadas.
O europeu leva as cilhas dos seus cavalos apertadas; o mouro completamente largas.
O europeu leva os alforges á garupa e divididos em dois; o mouro leva-os ao pescoço do cavalo e a um lado.
O europeu, se monta um burro, aguilhoa-o atrás na garupa; o mouro adiante, entre as espáduas.
O europeu usa armas curtas e de alcance; o mouro armas compridas e de pouco alcance.
O europeu prefere a pólvora de grão miúdo; o mouro prefere a pólvora de grão grosso.
O europeu veste o fato justo e de cores escuras; o mouro veste-o largo e de cores claras.
O europeu traz os pés bem abrigados e a cabeça pouco coberta; o mouro trá-los completamente ao ar e a cabeça bem coberta.
O europeu lava em primeiro lugar as mãos; o mouro os pés.
O europeu rapa a barba e corta o cabelo; o mouro rapa o cabelo e corta a barba.
Palácio Bahia em Marraquexe
O europeu senta-se em cadeiras e dorme em camas altas; o mouro senta-se no chão e em camas baixas de ordinário; – ainda que os mouros ricos das cidades e alguns baxas das províncias têm camas altas, e entre elas algumas de colunas e cobertas com colchas e tecidos de damasco. Estas camas são quase sempre muito elevadas do chão e costumam ter ao lado uma espécie de divan com almofadas. A altura deste está calculada de maneira que se possa subir para a cama com facilidade. Os divans são para uso particular das mulheres às quais as conveniências sociais e os costumes muçulmanos não permitem partilhar o leito dos seus donos e senhores, assim como a estes, não é permitido passar a noite inteira ao lado de suas mulheres. Este costume vai-se introduzindo na Europa aonde hoje muitos casados dormem separadamente.
O europeu tem as suas casas com janelas, em geral grandes; o mouro nas suas casas não tem janelas, ou se as tem são pequenas frestas somente para deixar entrar o ar.
A porta maior da casa do europeu é a da entrada; na do mouro esta é geralmente a mais pequena de todas, sendo algumas vezes apenas da altura de um homem.
O europeu recebe as visitas no interior da casa; o mouro recebe as suas fora, num banco que tem á porta. Raras vezes e com muito honrosas excepções, recebe as visitas na sua habitação, tendo feito antes com que se ocultem as mulheres usando na forma sacramental – Amel tree – dai lugar, seguindo-se depois a palavra – Dejul, entrai.
Em casa
O europeu gosta da sociedade e da conversação; o mouro gosta da solidão, e quando está acompanhado passa horas inteiras sem dizer uma palavra.
A mulher do europeu toma parte nas suas reuniões; as mulheres dos mouros reúnem-se entre si e jamais aparecem onde há homens.
O europeu come com a sua família; o mouro come só.
O europeu se tem convidados manda-os servir primeiro do que ele; o mouro se tem algum convidado ou hospede, come de tudo antes dele. Recordação nada lisonjeira de costumes de outros tempos que não foram exclusiva propriedade de Marrocos.
O europeu gosta da variedade na comida; o mouro não. Contudo a sua cozinha e confeitaria tem alguns pratos em que entram como parte obrigada o mel, a manteiga, o peixe, o almíscar, as essências de rosa, de jasmim e outras, em grande abundância. Estes manjares pouco gratos a paladares europeus não são todavia muito usados. O seu principal prato é o cús-cús, que é base da sua alimentação. Este é o manjar de que nunca se fartam e de que comem porções fabulosas.
O europeu bebe durante a comida a pequenos goles e sem fazer ruído; o mouro bebe depois da comida e de uma só vez, imitando o ruído da água caindo num sorvedouro.
No cemitério
O europeu tem o arroto por uma falta de educação; o mouro comete uma grande falta para com o seu anfitrião, dando-se este por muito ofendido se o seu hóspede não lhe dá os agradecimentos com um arroto de reconhecimento, de ordinário recebido com palmas, – Aljam-du-láh – (louvado seja Deus!) isto quer dizer – graças a Deus que saio de tua casa cheio e repleto!
O europeu mostra o seu respeito tirando o chapéu, beijando a mão alheia e passando por detrás; o mouro tirando as babuxas ou chinelas, beijando a sua própria mão e passando par diante.
O lugar de distinção do europeu é á direita; o do mouro á esquerda. O que faz dizer aos árabes que há uma coisa na nossa religião em que eles estão perfeitamente de acordo. Os maometanos, com mais crença e fé do que nós, acreditam na ressurreição universal de todos os seres e em que no dia do juízo final os bons estarão à esquerda do Criador e os maus à direita de forma que daí resulta os mouros dizerem com escárnio aos cristãos:
– Alguma vez havemos de ficar no lugar que merecemos. Deus nos colocará à sua esquerda, que é o lado do coração, enquanto a vós dará a direita, que é o lado da vingança e do castigo.
É impossível explicar duma maneira mais insinuante e mais breve o orgulho e desprezo com que nos considera esta raça. (1)
Músicos de rua
O europeu, se chama alguém com a mão, volta os dedos para baixo; o mouro volta os dedos para cima.
O idioma do europeu é geralmente formado nos beiços; o do mouro na garganta.
O europeu escreve da esquerda para a direita; o mouro da direita para a esquerda.
O europeu escreve as vogais e marca os períodos; o mouro escreve só as consoantes e não separa os períodos nem usa sinais de pontuação, e unicamente um sinal equivalente ao nosso ponto é que se encontra algumas vezes nos seus escritos. A dificuldade de ler o árabe é imensa em relação às línguas europeias, que, melhor ou pior pronunciadas, podem ser lidas por qualquer que tenha presentes as regras da leitura, ainda mesmo que não entenda a significação.
Mas o árabe, como todas as línguas semíticas, está muito longe disso, pois que é necessário do primeiro golpe de vista abraçar o sentido do que se lê, afim de oportunamente ir colocando as três vogais do alfabeto nos sítios onde as não pôs o escritor.
Esta particularidade, que entretanto não é tão diferente de vencer como parece, pode dar lugar a que, segundo a colocação das vogais, se possa ler uma palavra de diferentes modos, variando por conseguinte o sentido da oração. Por isso o Alcorão está sempre escrito com os sinais ortográficos que servem para substituir as vogais a fim de não dar lugar a uma interpretação duvidosa do texto escrito de tão famoso livro. Para tornar mais inteligível semelhante método citarei a nossa palavra padre, que escrita sem vogais – pdr, e fazendo depois uso das cinco vogais do nosso alfabeto, pode formar as palavras podre, poderá, poder, pedir, apodera e algumas mais.
Tatuagem com “henna”
O europeu usa adiante dos regimentos as bandas de música; o mouro sempre atrás.
O europeu tem só uma mulher e esta, muitas vezes, sobra-Ihe; o mouro tem geralmente mais do que uma e não pode dizer-se que lhe sobram, visto que não lhes dá lugar a que isso suceda.
O europeu recebe dinheiro como dote da família ou da sua própria mulher; o mouro entrega á família da mulher como dote uma quantidade de dinheiro ou valores estipulados.
Há entre o europeu, que muitas vezes busca a mulher porque lhe deseja o dinheiro, e o árabe que entrega parte ou todos os seus bens, porque deseja a mulher, alguma diferença.
Estou certo que as mulheres europeias prefeririam cem vezes o segundo costume, se os amores e os usos daquela raça fossem concordes com o sentimento que parece ter inspirado este costume àqueles que o instituíram como base da vida conjugal.
O europeu traz a sua mulher com a cara descoberta e o resto do corpo tapado; o mouro traz a mulher com a cara coberta e o resto do corpo bastante nu.
Ao europeu a lei e os costumes não lhe permitem castigar a sua mulher; ao mouro a lei e os costumes autorizam-no a isso terminantemente.
O europeu quando quer separar-se da sua mulher, tem alguma dificuldade, dá escândalo, gasta dinheiro se o quiser fazer legalmente; o mouro desfaz-se da mulher com a maior facilidade: com a perda do dote ou indemnização a dinheiro ou valores, se há contrato, senão com pequenos emolumentos pagos a um escrivão, – um galo e 100 reis dados à mulher.
Na mesquita
Na Europa as mulheres constituem a maioria dos fiéis nas igrejas; nas mesquitas dos mouros não podem entrar as mulheres, e se por acaso entram algumas colocam-se nos cantos mais obscuros, e procuram até conter a respiração para que a sua presença não possa perturbar o fervor e recolhimento em que se supõe deverem estar os seus donos e senhores.
A presença das mulheres nos nossos templos confundidas com os homens é uma, entre muitas, das razões porque os árabes olham com desprezo a nossa religião.
A consequência é lógica.
Os templos europeus têm luzes interiores e têm tectos altos; as mesquitas mouriscas recebem luz dos pátios e os tectos são de mui pouca elevação.
Na Europa as lojas são espaçosas, os compradores entram dentro delas e geralmente sentam-se em quanto que o vendedor mostra os artigos em pé; em Marrocos as lojas são muito pequenas, os compradores não se sentam nunca, porque ficam na rua, e os vendedores estão sempre sentados.
Tal é este originalíssimo país. Tal é esta originalíssima civilização!”
(CÂMARA, 1879, pág. 295-301)
Uma cáfila na Praia
Nota do autor deste artigo:
(1) A referência que o autor do texto faz em relação ao facto de Deus colocar os muçulmanos à sua esquerda “por ser o lado do coração” e os cristãos à sua direita, pretensamente por ser o lado “da vingança e do castigo” não tem qualquer fundamento e denota muita da referida incompreensão entre europeus e mouros, que o próprio texto de Ruy da Câmara encerra, pecando por um excesso de afirmações demasiado categóricas e de conclusões demasiado simplistas. No caso concreto do tema “direita e esquerda” o Alcorão é claro sobre o assunto e metafórico, contrariando o que Ruy da Câmara afirma. Na Surat Al-Waqui’ah, Surat nº 56, Parte nº 27, existem referências aos “companheiros da direita” e aos “companheiros da esquerda”, apresentando os primeiros como aqueles que seguem o caminho recto e os segundos como os que dele se desviam. Aliás estas referências repetem-se noutras Surat do Livro Sagrado e não têm qualquer significado sobre um eventual lado em que Deus coloca os “bons” e os “maus”.
Magnífico! Este Blog é uma perfeita enciclopédia dos sinais reveladores da atração fatal – e eterna… -que Marrocos sempre exerceu e continua a exercer sobre os portugueses…Além disso, tem uma apresentação perfeita com informação completíssima sobre Toda a História comum de Portugal e Marrocos. Parabéns!
(Quase apetece sussurrar: “que pena as absurdas barreiras religiosas….”)
Obrigados. Cumprimentos