Detalhe do Baluarte de S. Cristóvão em Azamor
“Portugal conservava os métodos construtivos, talvez por não sentir necessidade de modificar as estratégias e arquitecturas militares do reino, em situação estável. Só a expansão para outros domínios Além-mar mostrou a carência da evolução das formas de fortificação. Aí a ciência militar era constantemente testada, para deter a hostilidade latente de um inimigo muçulmano que cada vez se actualizava mais através dos contactos que também tinha com a vanguarda das artes da guerra.” (LOPES, 2009, pág.177)
No início do século XVI os portugueses levaram a cabo diversas obras de transformação nas fortificações conquistadas na costa de Marrocos, no período da transição da neurobalística para a pirobalística, introduzindo conceitos inovadores que contribuíram para o desenvolvimento da nova arquitectura militar do renascimento. Estas inovações foram protagonizadas por “debuxadores” como Diogo Boytac e Francisco Danzilho, mas sobretudo pelos irmãos Diogo e Francisco de Arruda, influenciados pelo modelo italiano, que constituía a vanguarda da época. As fortificações deste período ficaram conhecidas pelo nome de “fortificações da transição” e Marrocos foi uma espécie de laboratório onde os novos conceitos foram postos em prática.
A rede de ocupação portuguesa da costa de Marrocos
A ocupação da costa marroquina assentou num modelo hierarquizado, com base em três tipos de estruturas fundamentais:
As Praças-Fortes, entendidas como os aglomerados urbanos conquistados, nas quais os portugueses vieram a introduzir melhoramentos ao nível das suas fortificações e alterações na sua estrutura urbana, para as adaptar melhor às condições de isolamento em que se encontravam. A ocupação dessas praças implicava a gestão de comunidades pré-existentes, sendo nalguns casos, como em Safim e Azamor, precedida por um período de protectorado. Apesar de altamente deficitárias, dependendo quase exclusivamente de abastecimentos provenientes da metrópole, as praças procuravam atenuar a situação através do estabelecimento de acordos circunstanciais com as zonas circundantes.
As Fortalezas, fortificações isoladas ocupadas por guarnições militares, eram criadas para garantir presença em zonas inóspitas, para pressionar os principais “ninhos” de corsários ou para complementar a capacidade defensiva das praças. Estavam nesta “dependência operacional”, Aguz para Safim, Castelo Real de S. Jorge para Azamor ou Ben Mirao para Santa Cruz do Cabo Guer.
O Borj Nador, atalaia da Praça de Safim
As Atalaias, torres de vigia situadas em torno das Praças-Fortes, geralmente ocupadas apenas durante o dia, tinham como objectivo garantir a sua segurança nos períodos em que as portas eram abertas para que os habitantes desenvolvessem actividades no seu exterior, como por exemplo recolher lenha. Eram estruturas de carácter precário, por vezes simples postos de vigia situados em elevações, mas foram construídas algumas torres em pedra e cal, das quais ainda resta hoje o chamado “Borj Nador”, atalaia da Praça de Safim, situado junto à praia de Sidi Bouzid, que se encontra em estado de ruína quase total.
A Couraça de Alcácer Ceguer, projectada por Diogo Boitaca em 1502
O facto de as Praças-Fortes se implantarem num meio extremamente hostil e necessitarem de abastecimentos frequentes, deu origem à introdução de alguns aspectos singulares em termos de elementos construtivos, casos dos atalhos, das couraças e dos terreiros, como sintetiza R. Carabelli na sua obra “L’Héritage Portugais au Maroc, un patrimoine d’actualité”.
O atalho era um tramo de muralha que dividia a área intramuros em duas. “Imediatamente após a conquista de um local, os portugueses tinham por princípio reduzir, por vezes de forma drástica, o tamanho das cidades em que se instalaram. Esta espécie de “redução” toma o nome de atalho e materializa-se na construção, no interior da muralha existente, de novas muralhas. Após essa construção, parte dos bairros ficam fora do recinto fortificado.” (CARABELLI, 2012, pág. 90)
A couraça era um tramo de muralha que estabelecia a ligação entre esta e o mar. “Consolidada na sua extremidade por uma torre, a couraça permite deslocações protegidas entre a cidade e o mar e, portanto, facilita o carregamento e descarregamento de tropas e equipamentos sob pressão inimiga. Também ajuda a “conquistar” a praia e dissuadir o inimigo de qualquer manobra para bloquear a passagem.” (CARABELLI, 2012, pág. 91)
O terreiro era o principal espaço comunitário de ar livre das praças. “Termo de origem rural, tradicionalmente indicando um espaço aberto situado nas imediações do edifício principal da comunidade, muitas vezes palácio feudal, que abrigava as principais cerimónias públicas, laicas e religiosas. Durante as cerimónias, a população reunia-se no terreiro, bem como os cavaleiros antes de incursões no interior do território.” (CARABELLI, 2012, pág. 92)
Baluarte da Alcáçova ou do Castelo do Alto de Safim
As intervenções nas fortificações medievais realizadas pelos portugueses em Marrocos no início do século XVI tiveram como objectivo a sua adaptação ao uso da artilharia. A introdução das armas de fogo veio revolucionar toda a filosofia de defesa, transformando as seteiras em canhoneiras e eliminando o adarve ou caminho de ronda, já que a defesa da fortificação deixa de se fazer ao longo de toda a muralha, concentrando-se nos baluartes, colocados estrategicamente de modo a cobrirem todos os ângulos de tiro. A espessura dos panos de muralha aumenta e a sua altura diminui, com o objectivo de resistirem melhor ao impacto dos projecteis. As superfícies dos baluartes tornam-se arredondadas e os panos de muralha inclinados, para aumentar a sua capacidade de fazer ressaltar esses projecteis, introduzindo-se também materiais com uma maior capacidade de absorver o seu impacto, como o tijolo cozido, junto às aberturas onde os soldados se colocavam.
Os baluartes tornam-se estruturas mais complexas, com canhoneiras dispostas em dois níveis, rasgadas horizontalmente para conferir aos canhões maiores possibilidades de ângulos de tiro, com pavimentos abobadados para suportar o peso dos engenhos e dos barris de pólvora, e descobertos superiormente afim de garantir a ventilação dos fumos provenientes dos disparos.
As fortificações de Arzila . fonte Jorge Correia
As intervenções realizadas em Arzila no início do século XVI por Francisco Danzilho, segundo projecto elaborado por Diogo Boytac (ou Boitaca), no seguimento do cerco que a vila sofre em 1508 pelo exército do sultão de Fez, reformula inteiramente a filosofia da sua defesa, permitindo aos portugueses controlar a praça de forma mais eficaz.
“Ainda no século XV, os portugueses optaram pela realização de um atalho que veio cortar a cidade em praticamente duas partes iguais, deixando de fora a metade mais afastada do mar e que se espraiava pela planície. Arzila portuguesa viu‐se reduzida a 45% da área islâmica herdada, preservando a faixa litoral imprescindível à estratégia de manutenção da praça. Um novo muro, de pedra e argila, traçava uma secante pelos baluartes que hoje se denominam de Tambalalão e Santa Cruz.” (CORREIA, 2012, página electrónica citada)
O projecto não só intervém nas estruturas defensivas em si, cerca e baluartes, como racionalizando a sua estrutura, regularizando o traçado de alguns arruamentos e a forma de alguns quarteirões, e introduzindo novas valências em termos de equipamentos. A “consolidação urbana da vila” (CORREIA, 2012, página electrónica citada) é fundamental para garantir a sua operacionalidade e eficácia defensiva.
A Couraça e o Baluarte da Couraça de Arzila
Especial atenção merece o tratamento da frente de mar, onde são construídas duas couraças com o objectivo de contrariar um eventual ataque com recurso a navios de guerra ou com tropas a partir da praia.
“Uma nova couraça, dobrando ligeiramente sobre a muralha noroeste da vila, permitia o tiro sobre embarcações ou tentativas de assalto com origem na água. Na intersecção da couraça com a muralha, erguia‐se o Baluarte da Couraça, sentinela e protecção do flanco de terra. (…) Entre a couraça nova e o Baluarte da Pata de Aranha apontava‐se ao mar um novo baluarte que, por se situar em frente ao Mosteiro de São Francisco, se chamava dos Frades ou de São Francisco. Tratava‐se de uma estrutura semelhante a uma couraça, com torreão cilíndrico na ponta, possibilitando o disparo sobre as cortinas adjacentes e, como tal, quebrando a longa extensão da muralha marítima da vila.” (CORREIA, 2012, página electrónica citada)
As fortificações de Azamor . fonte Ana Lopes
A intervenção em Azamor é marcada pelo génio dos irmãos Diogo e Francisco de Arruda, que reformulam as suas defesas.
Sendo uma vila que se desenvolve de forma longitudinal ao longo do Rio Oum Er-Rbia, ou Morbeia como lhe chamavam os portugueses, é construído um atalho perpendicular ao mesmo, que corta a vila em três partes, estabelecendo-se a praça portuguesa no terço situado a Norte, mais próximo da foz. Esta proposta de traçado do atalho teria sido realizada anteriormente por Francisco Danzilho, aquando da sua participação na conquista da cidade.
A intervenção de consolidação urbana é uma vez mais decisiva para a estruturação da vila, contrariando o princípio do urbanismo Árabe, segundo o qual “a cidade é uma árvore”, materializado na hierarquização das suas vias e na criação de impasses habitacionais, e introduzindo uma filosofia de racionalidade.
Baluarte de S. Cristóvão em Azamor
Fortemente influenciados pelo Mestre italiano Francesco di Giorgio Martini, os irmãos Arruda concebem para Azamor uma série de baluartes de forma redonda, com canhoneiras em dois níveis, considerados como autênticas “máquinas de guerra”.
“Quanto aos dois baluartes mais importantes da praça, eram tidos como suficientes para proteger o castelo, tal era a sua grandiosidade. S. Cristóvão (de forma circular) e o Raio (de planta alongada e com remate semicircular) são massas imponentes que dominam dois extremos da fortificação. A desmultiplicação de níveis de tiro nos vários sentidos (rasantes e radiais) e os rasgamentos verticais feitos no corpo dos baluartes mostram duas estruturas militares de grande efeito dissuasor. Reúnem a potência das novas armas de fogo de modo efusivo com um desenho que exibe um resultado decorativo sem antecedentes na arquitectura militar.” (LOPES, 2009, pág.85)
Vista aérea da Cidadela de Mazagão . foto Aéroclub Jean Bertin
“Mas ainda seria necessário aguardar mais uma década para que, na esteira da queda de Santa Cruz do Cabo Gué (1541) e da reforma dos sistemas defensivos de Ceuta e Mazagão, os arquitectos portugueses aprendessem, com Benedetto da Ravena, arquitecto de Carlos V, a arte de fortificar “à italiana”, com baluartes angulosos.” (BARROCA, 2003, pág. 109)
Os conceitos inovadores postos em prática no período da transição seriam desenvolvidos e aplicados nas fortificações da geração seguinte, cujo exemplo paradigmático é o da Cidadela de Mazagão. Esta, considerada a primeira fortificação da era moderna, assumiu plenamente as novas potencialidades que a pirobalística oferecia, e afirmou a sua invencibilidade durante os 260 anos que serviu a coroa portuguesa.
Mas a excepcionalidade de Mazagão ultrapassa o simples conceito de fortificação, revelando-se também como um modelo de planeamento e construção da cidade, de transposição para o território de funções urbanas, instaladas segundo determinada escala e de acordo com princípios de racionalidade e sustentabilidade. Serão também estes conceitos da cidade do Renascimento que as novas cidades coloniais irão por em prática, e que contribuirão decisivamente para o desenvolvimento do planeamento urbano moderno.
Bibilografia:
BARROCA, Mário Jorge. “Tempos de resistência e de inovação: a arquitectura militar portuguesa no reinado de D. Manuel I (1495-1521)”. Portugália, 2003
CARABELLI, Romeo. “L’Héritage Portugais au Maroc, un patrimoine d’actualité”. Mutual Heritage, 2012
CORREIA, Jorge. “Muralha e Castelo, Assilah (Arzila), Norte de Africa, Marrocos, Arquitectura Militar.” HPIP, Património de Influência Portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian. Última Actualização 11/09/2012
LOPES, Ana Catarina Gonçalves . “(A)Cerca de Azamor, estruturas militares ao manuelino, Volume 1”. Universidade do Minho, Escola de Arquitectura, Outubro de 2009