Planta de La Mamora em 1621 . desenho anónimo espanhol
No final de Junho de 1515 uma força portuguesa composta por 8.000 homens e 200 navios ocupou a povoação de Al-Ma’mora na foz do Oued Sebou, com a missão de construir no local uma fortaleza, baptizada com o nome de Forte de S. João da Mamora.
Cerca de seis semanas depois, um exército ao serviço do sultão de Fez ataca o arraial português, que não resiste à investida dos marroquinos. Na retirada, em debandada, Portugal perdeu cerca de 4.000 homens e metade dos 200 navios, e deixou no local um considerável arsenal de artilharia.
Damião de Góis escreveu que “esta foi a maior perda de gente, e munições de guerra que el-rei D. Manuel teve em todo o tempo do seu reinado”. (GÓIS, 1566-1567, III Parte, Cap. LXXVI, fl. 132)
A foz do Rio Cebú vista da Casbah de Mehdia
O nome Mamora deriva do árabe Ma’mora, que significa cheia, no sentido de povoada. O nome actual do local é Mehdia e alguns autores defendem que terá origem no Mahdi Ibn Tumart, chefe dos Almoadas, já que o seu sucessor Abdel Mumen terá aqui fundado um estaleiro naval, que explorava a madeira da floresta vizinha. O local teria sido posteriormente fortificado por Abu Yusuf Yaqub Al-Mansur, que aí construiu uma Casbah. Outros autores defendem que o termo deriva do árabe hadya, que significa oferta, nome dado ao local por Mulay Ismail após a sua conquista aos espanhóis em 1681.
Leão O Africano descreve o local como pouco povoado na época da incursão Portuguesa, referindo que é rodeado de florestas habitadas por grandes leões dos mais cruéis de toda a África. Foi antigamente um lugar muito povoado, daí o seu nome Mamora, a Cheia no sentido de Povoada. Leão também referencia o local como ocupado por corsários de Salé. (LÉON L’AFRICAIN, [1530] 1897, Vol. II, p. 42)
Localização da Fortaleza de S. João da Mamora
A Mamora era um local de grande relevância estratégica. Situada na foz do mais caudaloso rio de Marrocos, o Ued Sebou ou Rio Cebú, constituía um ancoradouro natural abrigado, o porto da cidade de Fez e um ponto de chegada de uma importante rota de caravanas. A Mamora era também um ninho de corsários que atacava regularmente os navios portugueses. D. Manuel de Portugal pretendia fazer vergar os reinos de Fez e Marraquexe através da colocação de várias fortalezas na costa de Marrocos, conseguindo o apoio do Papa para o financiamento de uma cruzada que seria iniciada com a construção de um forte no Rio Cebú, após o que seria construído outro em Anafé. Para além disso, o projecto de construção de fortalezas na Mamora e Anafé tinham como objectivo o preenchimento do hiato costeiro que servia Fez, ligando as praças do chamado Marrocos Verde às do Marrocos Amarelo.
Por ordem de D. Manuel, começa a organizar-se uma expedição com o objectivo de ocupar o local e construir aí a 7ª fortaleza portuguesa na costa marroquina. David Lopes refere que em 1507 o rio já tinha sido sondado e “em 1514, o rei ordenou a Estêvão Rodrigues Bérrio e a João Rodrigues que procedessem a um reconhecimento da barra do rio Cebu, tomando medidas do seu fundo, da amplitude da maré, da quantidade de navios que ali poderiam entrar, das características da terra em ambas as margens, da existência de madeira e pedras para construção, das condições de uma pequena ilha ali existente, tudo com fins estratégicos”. (SERRÃO, 1965, obra citada)
A Casbah de Mehdia vista do rio
No dia 13 de Junho partiu de Lisboa uma armada de 200 velas e 8.000 homens, entre os quais 2.000 a cavalo, comandada por D. António de Noronha, e na qual iam também D. Álvaro de Noronha, capitão da futura fortaleza, e Diogo Boytac, responsável pela sua construção.
A armada é assim descrita por Damião de Góis :
“Era capitão general D. António de Noronha, iam nela mais de oito mil soldados fora oficiais que haviam de fazer a fortaleza, marinheiros, e moradores para lá ficarem com suas mulheres e filhos: na frota haveria duzentas velas entre naus, navios, galés, e fustas.” (GÓIS, 1566-1567, III Parte, Cap. LXXVI, fl. 131)
Na armada iam também D. Álvaro de Noronha, capitão da futura fortaleza, e Diogo Boytac, responsável pela sua construção. A armada chegou à Mamora no dia 23 e no dia seguinte começaram os preparativos para a construção da fortaleza:
“No dia seguinte, foi desembarcada, no local escolhido para a fortaleza, uma vila de madeira, com baluartes e torres, que ia na armada, para dentro dela, sem perigo, se fazer uma de pedra e cal – e, por isso se ter feito no dia de S. João, foi essa fortaleza assim chamada, isto é, de S. João da Mamora”. (LOPES, [1937] 1989, p. 39)
Uma das estruturas que integra o complexo da Casbah de Mehdia, no local onde os portugueses terão tentado construir o Forte de S. João da Mamora
As obras começaram a bom ritmo, mas o local foi mal escolhido, já que se situava junto a um monte, que lhe seria fatal. Aliás, segundo Damião de Góis, não foi respeitado o local definido para a implantação do forte, o que explica que o estudo realizado de nada serviu, tendo sido escolhido um outro local segundo opiniões do momento:
“Depois da frota ser dentro, Diogo Bérrio foi mostrar a D. António o lugar em que se havia de fazer a fortaleza, o qual a juízo de todos pareceu pouco conveniente para isso, pelo que assentaram que se fizesse noutro mais perto da foz em que havia fontes de água, e melhor posto para desembarcarem, no qual mandou lançar em terra dois esquadrões de gente de ordenança, e uma vila de madeira que levava, e outros apetrechos necessários, o que se tudo fez na mesma noite que entraram, e logo no dia seguinte depois de ter armado a vila de madeira se começou no entender do fazer da fortaleza, no que todos ajudavam, assim capitães, como toda a outra gente, com tanta diligência, que em poucos dias fizeram a cava de catorze palmos de altura, e vinte de boca, em que tomavam a água da maré, e soltavam quando queriam.” (GÓIS, 1566-1567, III Parte, Cap. LXXVI, fl. 131)
No interior da Casbah de Mehdia
No dia 19 de Julho, Mulai Nasser, vice-rei de Meknés atacou as forças portuguesas com um grande exército, composto por 3.000 cavaleiros e 30.000 peões, colocando as suas forças numa posição vantajosa, precisamente no outeiro que lhe era sobranceiro, onde posicionou várias peças de artilharia. Para além disso colocou mais canhões na entrada da barra para cortar a ligação entre as forças navais e terrestres portuguesas. Os portugueses tentaram reagir, fazendo no dia 22 um ataque encosta acima, durante o qual morreram 1.200 militares. Colocaram também uma nau na barra, fazendo fogo sobre as baterias inimigas, mas a nau acabou por ser afundada.
Góis descreve as forças atacantes referindo que “Moleinaçer Rei de Mequinez, que é duas jornadas de onde se esta fortaleza fazia acudiu com três mil de cavalo e trinta mil de pé, e o mesmo fez Molei Mahamed Rei de Fez, com muito maior companhia, de maneira que era tamanho o exército que trazia que cobria a terra duas léguas ao redor”. (GÓIS, 1566-1567, III Parte, Cap. LXXVI, fl. 131)
O clima de desacordo reinava nas hostes Portuguesas, acusando-se mutuamente os comandantes da armada e da fortaleza pelos erros da localização do Forte. No dia 4 de Agosto, D. António de Noronha propunha ao Rei que a armada fosse enviada para Sul, para atacar Anafé, enquanto D. Álvaro ficaria no Forte, então em fase de conclusão, com uma guarnição de 800 homens. No dia seguinte D. Álvaro também escreve ao rei, propondo que a Mamora fosse evacuada, recusando-se a ficar no seu comando.
No interior da Casbah de Mehdia
A 10 de Agosto é dada ordem de retirada, em grande desordem. Muitos Portugueses são mortos em terra, nas operações de embarque. Os navios ancorados no rio não puderam manobrar em condições, pelo facto de a maré estar baixa, e muitos encalharam ou foram afundados. O resultado foi desastroso, tendo morrido 4.000 Portugueses e perdidos 100 navios. Damião de Góis escreveu que “esta foi a maior perda de gente, e munições de guerra que el-rei D. Manuel teve em todo o tempo do seu reinado”. (GÓIS, 1566-1567, III Parte, Cap. LXXVI, fl. 132)
Leão O Africano comenta assim a mortandade que ocorreu neste evento:
“Os navios foram queimados, e a artilharia foi ao fundo, com uma tão grande carnificina de cristãos, que o mar se tingiu de vermelho pelo espaço de três dias”. Acrescenta que após a retiradas dos Portugueses, os Marroquinos resgataram do rio quatrocentos canhões. (LÉON L’AFRICAIN, [1530] 1897, Vol. II, p. 45)
O local da Fortaleza de S. João da Mamora
As consequências do desastre da Mamora nas aspirações de Portugal em Marrocos foram consideráveis. Não só pôs um travão na política de construção de fortalezas na costa marroquina, como teve um grande efeito nos mouros. Desde logo no Reino de Fez e nos alcaides do País Jebala, que ganharam outro alento, tendo utilizado a artilharia capturada para logo no ano seguinte cercar a Praça de Arzila. Mas esse efeito fez-se sentir sobretudo nos Mouros de Pazes, que começaram a por em causa os seus acordos com Portugal. A este propósito refere David Lopes:
“Foi isso, pois, uma séria preocupação para os capitães de Azamor e Safim; e Nuno de Ataíde escrevia, por esse tempo, ao soberano que se mantivesse a todo o custo a fortaleza da Mamora, porque com a sua perda muito teria a sofrer o bom nome português e a segurança daquelas praças e da zona tributária.” (LOPES, [1937] 1989, p. 40)
Fortaleza da Mamora no século XVIII . João Thomás Correa, in Livro de várias plantas deste Reino e de Castela, 1699-1743
Após a tentativa portuguesa de construção do forte, o local é ocupado por corsários liderados pelo inglês Henry Mainwaring, que proclama a República de Corsários da Mamora.
No seguimento da conquista de Larache em 1610, e antecipando-se à eventual conquista da Mamora pelos holandeses, os espanhóis ocupam a foz do Cebú em 1614 e constroem um forte onde deixam uma guarnição de 1.500 homens, baptizando o lugar com o nome de San Miguel de Ultramar. A ocupação espanhola, realizada “à revelia dos tratados Ibéricos” (GOMES, 2014, página electrónica citada), durou 67 anos, e foi atribulada, sofrendo 9 cercos. Os corsários da República de Bouregreg chegaram inclusivamente a ocupar momentaneamente o local no tempo de Sidi Al-Ayachi.
Interior da Mesquita de Mulay Ismail na Casbah de Mehdia
Após a conquista da Mamora por Mulay Ismail em 1681, o local passa a chamar-se Mehdia, sendo o topónimo Ma’mora apenas utilizado para designar a floresta que a rodeia. Mulay Ismail transforma a Casbah num complexo fortificado de grandes dimensões, uma cidadela que inclui as estruturas defensivas anteriores, que são ampliadas e melhoradas, um palácio, um hammam em estilo mourisco, uma mesquita, habitações, uma prisão, um funduk (hotel), lojas e restantes infraestruturas de apoio, como várias cisternas. A conquista rendeu a Mulay Ismail um vultuoso saque, que incluiu uma imagem de Cristo, que foi levada para Meknés e arrastada pelas ruas como símbolo da vitória sobre os espanhóis. A imagem acabou por ser resgatada por um padre no ano seguinte, que a colocou na Basílica de Jesus de Medinaceli (a antiga Medina Salem), onde é ainda alvo de uma grande devoção.
Durante a II Guerra Mundial forças Norte-Americanas desembarcam na praia de Mehdia e ocupam a Casbah, então nas mãos dos franceses colaboracionistas do governo de Vichy, danificando gravemente as fortificações.
Do forte português hoje nada resta.
O Cristo de Medinaceli sendo arrastado pelas ruas de Meknés . pintura de Juan de Valdés Leal, 1681
Bibliografia:
GÓIS, Damião de. “Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel”. Casa de Francisco Correa, Impressor do Sereníssimo Cardeal Infante. Lisboa, 1566-1567
GOMES, Diogo Cardoso . “Expedição da Mamora” . Temas e factos. 2014. http://www.fcsh.unl.pt/cham/eve/content.php?printconceito=1249
IDPCM . Inventaire et Documentation du Patrimoine Culturel du Maroc . http://www.idpc.ma/
LÉON L’AFRICAIN, Jean. “Description de l’Afrique” (1530). Tierce partie du monde. Second Volume. Ernest Leroux Éditeur. Paris, 1897
LOPES, David. “A Expansão em Marrocos”. Editorial Teorema, Lisboa, 1989 (Publicação original BAIÃO, António, CIDADE, Hernâni e MURIAS, Manuel . “História da Expansão Portuguesa no Mundo, 3 vols. Editorial Ática. Lisboa, 1937)
SERRÃO, Joel . “Dicionário de História de Portugal” . Iniciativas Editoriais. Lisboa, 1965
Gostei bastante de saber deste episódio com um maior detalhe. Mesmo porque, investigando a minha genealogia tinha tido conhecimento da morte em Mamora e em combarte de D. João de Moura. Ao que tudo indica meu antepassado… Um como tantos outros perdidos na voragem dos tempos e da memória dos que se seguiram… Obrigada!
Foram muitos os que ficaram na Mamora. É um episódio da nossa história pouco conhecido, como são a grande maioria dos que retratam derrotas. Injustamente, porque nas derrotas, como nas vitórias, há sempre heróis que importa homenagear
Gostaria de aqui deixar uma palavra de apreço e gratidão pela enorme satisfação que me deu ler o seu trabalho acerca de uma temática que eu desconhecia por completo. As fotografias, gravuras e demais ilustrações são, por si só, um prazer para quem como eu gosta destes assuntos. Um grande bem aja…
É de facto um tema muito interessante e muito pouco divulgado. Cumprimentos
Aprendemos muito com estes seus textos a partir da excelente bibliografia consultada, Agradeço a sua generosa partilha do que escreve e pergunto: porque em Portugal , pelo menos menos desde 1820 até ao presente , esta história sempre foi desconhecida ou escondida? E só ouvimos aqueles argumentos ditados pelo sentimento da inveja , de que somos pequeninos e medíocres!
Não sei se serei eu a pessoa indicada para responder a uma pergunta dessa natureza. Provavelmente a melhor resposta serão outras interrogações, como por exemplo:
Por manipulação da verdade histórica? Por vergonha do passado? Por afirmação nacionalista? Por intolerância (religiosa, étnica, politica, etc.)? Por necessidade de afirmação da nossa identidade europeia?