Gravura de Tânger no séc. XVI de Braun and Hogenberg
Desde que fora conquistada em 1415, Ceuta era um sumidouro de dinheiro. Com o bloqueio terrestre imposto pelos marroquinos e abandonada pela sua população, “Ceuta tornou-se pouco mais do que uma grande e vazia cidade-fortaleza varrida pelo vento, com uma dispendiosa guarnição portuguesa que tinha que ser abastecida continuamente através do mar”. (LOPES, [1937] 1989, obra citada)
Ao crescente número de vozes que defendiam o seu abandono por Portugal, o Infante D. Henrique, principal defensor da política expansionista portuguesa, contrapunha a ideia da conquista de outras praças no Norte de Marrocos, nomeadamente de Tânger, para criar um enclave de maiores dimensões e prosseguir a expansão além-mar.
A possibilidade de Castela tomar Tânger precipitou os acontecimentos. Mas contrariamente ao que se passara com Ceuta, o ataque a Tânger foi deficientemente planeado e foi descorado o necessário secretismo a uma operação dessa envergadura. Para além disso, não existia uma motivação geral pela expedição, a qual implicava a impopular cobrança de mais impostos no Reino para o seu financiamento e o recrutamento forçado de soldados. O próprio transporte do exército foi resolvido com recurso ao frete de embarcações de carga a Castela e Aragão, não dispondo o país de uma armada preparada para apoiar eficientemente as tropas na batalha. No final, armada que saiu de Portugal era constituída por apenas 6.000 homens, número muito reduzido, tendo em conta que se estimava inicialmente que seriam precisos cerca de 14.000 para a expedição. (PINA, [15–] 1901, p. 96)
A descrição que se segue narra os acontecimentos ocorridos desde a saída das forças portuguesas da praça de Ceuta no dia 27 de Agosto de 1437 até ao seu resgate na praia de Tânger no dia 19 de Outubro do mesmo ano.
A Porta do Mar da Alcáçova de Tânger
O rei D. Duarte traçou o plano que D. Henrique deveria seguir e que era o seguinte:
Após chegar a Ceuta, a armada seria dividida em três, colocando-se nos navios apenas o número indispensável de soldados para que fossem operacionais. Um terço da frota seria posicionada frente a Alcácer Ceguer, outro terço frente a Tânger e o outro frente a Arzila, por forma a que os seus habitantes se mantivessem nas suas cidades e não viessem em socorro de Tânger. O grosso do exército faria o caminho por terra, entre Ceuta e Tânger, e em Tânger as estruturas do cerco seriam colocadas de tal forma que tivessem contacto com o mar para apoio logístico, nas suas duas extremidades ou, não sendo viável, pelo menos numa delas. Note-se que esta directiva de D. Duarte mostra bem a falta de conhecimento que os portugueses tinham das características dos terreno e das necessidades de tropas para cercar a cidade “de mar a mar”. (PINA, [15–] 1901, p. 93-94)
A falta de secretismo que rodeou a expedição permitiu ao governador da cidade, Salah Ben Salah, e ao regente do sultão de Fez, Abu Zakarya Yahya al-Wattasi, a quem os portugueses chamavam Lazeraque, a organização das suas defesas. As fortificações foram melhoradas, as guarnições reforçadas e as passagens nas montanhas em volta de Ceuta seladas. Tânger possuía uma guarnição de 7.000 homens, aos quais se juntaram cerca de 600 besteiros Andalusinos enviados pelo Reino de Granada. Para além destes, há notícia de uma grande mobilização de voluntários por todo o Reino, que afluíam a Fez com determinação de combater o invasor português.
Esta precipitação e falta de cuidado com que o ataque a Tânger é realizado, é explicado por David Lopes como uma jogada de antecipação em relação a Castela, o que “iliba a memória de D. Duarte e de D. Henrique do labéu de leviandade de que lhes foi assacado” (LOPES, [1937] 1989, p. 18).
Percurso das forças portuguesas entre Ceuta e Tânger
D. Henrique não seguiu as instruções de D. Duarte e no que se refere a dividir a armada em três e traçou outro plano extremamente ambicioso, senão completamente irrealista, já que previa fazer o percurso entre Ceuta e Tânger pela costa, conquistando no caminho Alcácer Ceguer. No dia 27 as forças portuguesas iniciam o seu trajecto, com um destacamento avançado de 1.000 homens comandado por João Pereira, fidalgo da casa de D. Pedro, e os restantes soldados na rectaguarda sob as ordens do infante D. Henrique.
Junto ao local de Almarça dá-se um primeiro confronto e verifica-se que o caminho do litoral se encontra fortemente defendido, o que obriga os portugueses a voltar para trás. “E sobre o Porto da Calçada, que é caminho de Almarça, houve com os inimigos peleja assaz perigosa e travada, em que o capitão dos mouros, que se chamava Jále, sobrinho de Focem, alcaide de Alcácer Ceguer, foi morto com outros muitos dos seus: e dos cristãos morreu um só, e foi Rui Dias de Sousa ferido com outros poucos; de que veio nova ao Infante, por rumor não certo, como os cristãos vinham em desbarato, perseguidos dos mouros” (PINA, [15–] 1901, p. 98).
O Rif entre Ceuta e Tânger
As tropas permanecem nos arredores de Ceuta até à manhã do dia 9 de Setembro. Durante este tempo é decidido que o infante D. Fernando “por ser doente” partiria com a armada juntamente com 2.000 homens, enquanto D. Henrique seguiria por terra, fazendo o caminho por Tetuan, num total de cerca de 110 quilómetros, levando consigo o exército, composto por 2.000 cavaleiros, 1.000 besteiros e 3.000 peões. Nesta força incluíam-se os 300 ginetes de Rui de Sousa, alcaide-mor do castelo da Vila de Marvão, e seu filho Gonçalo Rodrigues, uma espécie de tropa de elite de intervenção rápida, com grande mobilidade. (PINA, [15–] 1901, p. 99)
Para evitar que a partir do Sul se organizasse um qualquer ataque contra as forças portuguesas, D. Pedro de Menezes, governador de Ceuta, tinha mandado no dia do Corpo de Deus (11 de Junho) o seu filho bastardo Duarte de Meneses fazer um raid preventivo contra a cidade de Tetuan, cidade que foi destruída e esvaziada da sua população (ZURARA, [1463] 2015, p. [622-623] 420-421). Rui de Pina também comenta a destruição de Tetuan e o acampamento que o exército aí montou no seu caminho para Tânger: “E á terça feira, na mesma ordenança partiu e foi assentar seu arraial em Tutuão, junto com os muros, da parte de fora: o qual era despovoado; porque havia poucos dias que D. Duarte de Menezes, por aviamento do conde seu pai, fora sobre ele para por força o tomar, e a gente não esperou cerco nem aí afronta, e D. Duarte entrou primeiro e deixou-o desportilhado” (PINA, [15–] 1901, p. 100).
Vista aérea da cidade de Tânger, sendo visível, ao fundo, a cidade de Ceuta
Na segunda-feira dia 9 o exército põe-se em marcha, levando na sua dianteira os 300 ginetes de Rui de Sousa. A vanguarda é comandada por D. Fernando, conde de Arraiolos. D. Fernando de Castro, alcaide-mor da Covilhã, comanda a ala direita e o seu homónimo alcunhado de o Cegonho, vedor da casa do infante D. Henrique, comanda a ala esquerda. D. Henrique comanda o centro das forças. Nessa noite acamparam no Paúl, a quatro léguas de Ceuta e no dia seguinte o arraial português é montado junto às muralhas de Tetuan, conforme já referido. No dia 11 pernoitaram no Vale de Angera, na Atalaia do Leão, “em que acharam muitas e boas aguas e grande abundancia de mantimentos” (PINA, [15–] 1901, p. 100). No dia 12 as tropas chegam a uma zona muito povoada e rica, onde os portugueses saquearam uma aldeia chamada Fonte dos Adais, matando alguns dos seus habitantes e fazendo outros cativos.
No dia 13 de Setembro chegaram finalmente a Tânger-o-Velho, onde se reuniram com a Armada e daí fizeram o caminho até à cidade ao longo da praia, atravessando a ponte sobre o Rio Magoga.
Construção do arraial português na cidade de Tânger
O arraial foi estabelecido numa colina situada a Poente da cidade, em situação elevada em relação à mesma, onde hoje se localiza um bairro denominado Marshan, apesar de D. Duarte ter ordenado a D. Henrique montar o arraial em contacto com o mar, para que as forças pudessem beneficiar do apoio da armada ancorada na praia. Esta situação tinha outra agravante já que o lugar do Marshan se situa a uma cota elevada, na chamada Falésia de Bouknadel, não podendo ser abastecido a partir do mar. “Foi assentar o arraial em um outeiro contra o Cabo Espartel onde estavam grandes hortas e pomares, e muitos poços de boas aguas.” (PINA, [15–] 1901, p. 101)
Entre o dia 13 e o dia 19 os portugueses ocuparam o seu tempo a montar o arraial, a garantir o controlo de poços circundantes e a transportar abastecimentos e equipamento militar, nomeadamente artilharia, a partir dos barcos. O arraial era de forma circular, rodeado por um fosso, estacaria e uma paliçada de madeira com cerca de dois metros de altura, reforçada exteriormente com paveses, ou escudos metálicos. “Com valo e repairos, como cumpria”, no dizer de Rui de Pina. (PINA, [15–] 1901, p. 102)
Tânger vista da colina do Marshan, local do arraial das tropas portuguesas
Mas assim que os portugueses chegaram a Tânger a contra-informação dos marroquinos começou a funcionar, espalhando o boato de que os habitantes da cidade estariam a fugir com medo. “Esta falsa notícia, espalhada pelos mouros, tinha como objectivo enfraquecer e dispersar as forças portuguesas, forçando um grupo delas a combater. Os mouros atraíam os portugueses para ciladas por eles preparadas, e os portugueses iam atrás deles e atacavam. Neste combate morreram alguns cristãos, ficando feridos outros, como foi o caso do Conde de Arraiolos e o Capitão Álvaro Vaz de Almada, feridos em uma das pernas e um dos braços respectivamente”. (MOREIRA, 2009, p. 72-73)
“Até sexta feira logo seguinte, que eram vinte dias de Setembro entendeu somente o Infante em mandar tirar do mar as armas e artilharias e mantimentos que cumpriam para o combate; nem houve peleja ordenada, salvo quanto os que saiam a dar guarda haviam com os mouros que topavam, alguns recontros e pelejas: de que uns e outros não saiam sem dano” (PINA, [15–] 1901, p. 102).
Principais ataques portugueses para tomar a cidade e os contra-ataques marroquinos
O primeiro ataque à cidade deu-se no dia 20 de Setembro, durou 5 horas, e foi um fracasso, já que não se conseguiram escalar os seus muros pelo facto de 3 das 4 escadas utilizadas não terem altura suficiente, o que demonstra a falta de cuidado no planeamento da operação, apesar de se terem conseguido ultrapassar as barreiras, uma primeira linha de defesa que consistia de paliçadas de madeira. Para além disso, os marroquinos entaiparam as portas da cidade, inviabilizando a sua destruição pelo fogo.
“Começou-se o combate horas de terça, e por uns e pelos outros com muita ardileza e esforço, que durou até cinco horas, em que se entraram logo as barreiras com grande risco e se combateram sem proveito as portas, que pelos mouros eram já de pedra e cal fortemente cerradas: e os combates ordenados das escalas não aproveitaram aos cristãos, nem os acometeram, assim por serem curtas, como por não haver disposição de caminho porque ao muro pudessem chegar; o que foi má providencia, e nos tais casos culpa muito de repreender.” (PINA, [15–] 1901, p. 102-103).
As muralhas de Tânger vistas do seu lado Poente, onde se deram os principais combates
As forças são divididas em 5 grupos, 4 dos quais atacam as muralhas do lado Poente, com recurso às referidas escadas e a artilharia. São comandados pelo infante D. Fernando, pelo conde de Arraiolos, pelo bispo de Évora, D. Álvaro de Abreu, e pelo marechal do reino e da expedição, Vasco Fernandes Coutinho, conde de Marialva. O 5º grupo, comandado por D. Henrique, atacou a Porta da Alcáçova, do lado Norte, com recurso a duas mantas, presume-se que para tentar queimar a porta. A manta era uma protecção contra objectos arremessados das muralhas, composta por tábuas de madeira grossa com pegas para facilitar o seu transporte.
Após mandar retirar os 5 grupos, D. Henrique ordenou a Álvaro Vaz de Almada, capitão-mor da frota real, que fizesse fogo de artilharia, o qual se mostrou pouco eficaz, já que os projécteis de granito utilizados não provocavam danos na alvenaria das muralhas. Para além disso, os besteiros Andalusinos ao serviço de Salah Ben Salah acabaram por afastar os artilheiros portugueses do local. No final do ataque tinham morrido 20 portugueses e 500 ficaram feridos.
A Porta da Alcáçova de Tânger
No seguimento deste fracasso D. Henrique encarrega D. Duarte de Menezes de voltar a Ceuta, onde seu pai D. Pedro de Menezes se encontrava às portas da morte, e trazer outras escadas e artilharia pesada. “Conveio ao Infante dar grande pressa no corregimento e emenda no defeito daquelas escadas e engenhos: e para isso enviou logo a Ceuta por outras maiores, e assim por duas bombardas grossas e pedra e pólvora; porquanto as que tinha assentadas eram assim pequenas, que não faziam o dano que se requeria” (PINA, [15–] 1901, p. 102-103).
Durante os 10 dias que se seguiram ocorreram diversas escaramuças entre cavaleiros portugueses e mouros nos campos circundantes da cidade, com vários mortos e feridos de ambos os lados.
As ruínas de Tânger o Velho
No dia 30 de Setembro chegam os primeiros reforços enviados pelo sultão de Fez. De acordo com a cronica de Rui Pina eram constituídos por 10.000 cavaleiros e 90.000 peões, número considerado muito exagerado e destinado a exaltar a coragem dos portugueses face ao inimigo (PINA, [15–] 1901, p. 105). D. Henrique envia os 300 ginetes de Rui de Sousa ao seu encontro e 50 são de imediato aniquilados, tendo os restantes regressado a muito custo, o que provocou grande consternação nas hostes portuguesas.
Os reforços marroquinos instalam-se num cabeço que os cronistas denominam “cabeço da serra” e nesse mesmo dia 30 de Setembro D. Henrique envia uma força de 4.300 homens, constituída por 1.500 cavaleiros, 800 besteiros e 2.000 peões, para os combater, mas os mouros permanecem no seu local elevado, levando os portugueses a recuar desanimados. No dia seguinte os portugueses voltam a atacar, sob o comando do infante D. Fernando, sem grandes resultados práticos.
No dia 3 de Outubro são os mouros que atacam. As forças portuguesas conseguem deter a investida e contra-atacam com o seu flanco esquerdo comandado por Álvaro Vaz de Almada e Duarte de Menezes, levando os mouros a iniciar uma retirada. Nessa altura sai um destacamento muçulmano das muralhas, que se dirige ao arraial português, procurando forçar os lusitanos a recuar. Mas o arraial resiste sob o comando de Diogo Lopes de Sousa, mordomo-mor e conselheiro do Rei, e os mouros retiram para dentro das muralhas. Esta vitória acalenta os ânimos dos portugueses, que irão tentar de novo o assalto à cidade.
Tânger vista do lado Nascente
O assalto dá-se no Sábado dia 5 de Outubro do lado Nascente das muralhas, com recurso a escadas e uma bastida, referida na crónica como castelo de madeira. “Porque o Infante tinha já as escalas emendadas segundo lhe parecia, e concertado um Castelo de madeira” (PINA, [15–] 1901, p. 109). Na bastida, pré-fabricada e montada no local, revestida com peles de animais para evitar que fosse queimada, foram colocados besteiros e arcabuzeiros que tentavam provocar o máximo de danos nos defensores colocados no topo das muralhas.
D. Henrique comandou pessoalmente o assalto às muralhas, encarregando o infante D. Fernando, o bispo de Évora e D. Fernando, conde de Arraiolos, de proteger os seus flancos dos ataques provenientes de surtidas da cidade e de tropas estacionadas fora de muros. O assalto volta a ser um fracasso, tendo as forças portuguesas sido afastadas através de forte fogo de artilharia e de alcatrão e linho a arder, que destruiu o próprio castelo de madeira. É dada ordem de retirada para o arraial.
Arredores de Tânger junto ao Cabo Malabata
Nos dias 6 e 7 chegam reforços de Ceuta, compostos por munições e novos engenhos de madeira, que são desembarcados na praia e posicionados frente às muralhas para se preparar um novo ataque à cidade. Mas esse ataque nunca se viria a realizar porque a partir do dia 8 instala-se o pânico nas hostes portuguesas.
Chega a notícia de que o sultão de Fez Abu Zakarya al-Wattasi, o Lazeraque, está prestes a chegar com novos reforços, que incluíam tropas dos reis de Marraquexe, Sijilmassa e mais 5 reinos, “e que fariam de gentes, segundo diziam, até sessenta mil de cavalo e setecentos mil homens de pé” (PINA, [15–] 1901, p. 111), número esse que a generalidade dos autores voltam a considerar como muito exagerado, ou os portugueses nem sequer poderiam esboçar a mínima resistência.
As tropas portuguesas retiram para o arraial, ficando apenas junto às muralhas a cavalaria comandada por D. Henrique, acompanhado do marechal da expedição, Vasco Fernandes Coutinho e do capitão Álvaro Vaz de Almada, que protegiam a artilharia.
Ataques marroquinos e retirada portuguesa
No dia 9 o exército do sultão ataca, vindo de todas as direcções. “Apareceram de todas as partes tantos mouros de cavalo e de pé, que somente uma serra nem terra ao redor não parecia deles vazia” (PINA, [15–] 1901, p. 111).
Os mouros apoderam-se de todas as peças de artilharia e demais engenhos de madeira e obrigam à fuga da cavalaria para o arraial, que é cercado. “Com grandes gritos e espantosos alaridos, como é seu costume, se juntaram todos, que com muita fúria moveram logo contra onde estavam as bombardas, engenhos e escadas que o marechal principalmente guardava, e tanta foi a força com que acometeram e apertaram, que os cristãos, para salvar as vidas, conveio deixar as tendas, bombardas e artilharias, que os mouros logo tomaram e recolheram” (PINA, [15–] 1901, p. 112).
Os ataques ao arraial intensificam-se, provocando a debandada geral das linhas defensivas portuguesas, que se refugiam no palanque, construído próximo da praia poucos dias antes, trazido em peças pré-fabricadas. O palanque era uma estrutura defensiva de madeira onde um exército se podia proteger, normalmente utilizada em cercos como seria o caso do posterior cerco de Arzila em 1471.
Muitos portugueses fogem e refugiam-se nos navios, como refere Rui de Pina: “Alguns fidalgos e muitos cavaleiros e escudeiros, e deles seus criados e outros, que fariam número de mil, lhe fugiram e se recolheram aos navios” (PINA, [15–] 1901, p. 113).
O palanque de Arzila nas Tapeçarias de Pastrana
A mudança das defesas portuguesas do arraial para o palanque teve a vantagem de as colocar mais próximo da praia e reduzir a área a defender, mas trouxe outros problemas consigo, um dos quais foi o da falta de abastecimento de água, já que o arraial tinha um poço no seu interior. O moral das tropas era nesta altura muito baixo e “muitos já tinham desistido de lutar” (MOREIRA, 2009, p. 80).
Na quinta-feira 10 de Outubro os mouros iniciam o seu primeiro ataque ao palanque. “O Infante D. Henrique constata que não tem força militar suficiente para combater e entra em desespero, começando a rezar e a chorar” (MOREIRA, 2009, p. 80). O ataque dura 4 horas e os portugueses resistem. No dia 11 acabam os mantimentos. No dia 12 Salah Ben Salah oferece aos portugueses a possibilidade de saírem em segurança mediante a entrega de Ceuta e o abandono de todas as armas no local. Do lado português as negociações são realizadas por Rui Gomes da Silva, alcaide-mor de Campo Maior, que não chega a acordo. Perante a recusa dos portugueses, o palanque é atacado com lenha e alcatrão a arder. Após resistirem 7 horas ao ataque, sob o comando de D. Fernando de Castro, “O Velho”, fidalgo da casa do Rei, os portugueses voltam a reparar o palanque. “No meio do combate, o Bispo de Ceuta animava as tropas com sermões, elogios e absolvição” (MOREIRA, 2009, p. 81).
A medina de Tânger e a praia
No dia seguinte, Domingo 13 de Outubro, os mouros apoderaram-se dos poços que os portugueses utilizavam nas redondezas e envenenaram-nos, mas felizmente choveu e todos beberam a água da chuva. Os soldados começaram a matar os seus cavalos para se alimentarem. A rendição estava próxima.
A rendição dá-se no dia 19 de Outubro. Os sobreviventes portugueses foram autorizados a partir “com seus vestidos somente” (PINA, [15–] 1901, p. 124), ficando cativos o infante D. Fernando e outros fidalgos com a promessa de D. Henrique de serem trocados por Ceuta, conforme rezam as condições estabelecidas: “Que os mouros deixassem ir e embarcar livremente nos navios todos os cristãos com seus vestidos somente, e a eles ficasse o arraial com armas, cavalos entregue a cidade de Ceuta com todos os mouros cativos que nela estivessem, e que ficassem em paz, a qual se obrigou o Infante que El-Rei desse por mar e por terra a toda a Berberia por cem anos; e para segurança dos cristãos, e que sem contradição os deixariam ir, deu Çalla Bemçalla um seu filho em poder do Infante, e por o dito filho de Çalla Bemçalla ficaram reféns Pedro de Ataíde e João Gomes do Avelar, e Aires da Cunha, e Gomes da Cunha; e para segurança dos mouros, que Ceuta com os cativos lhe seriam entregues, se deu como refém em seu poder o Infante D. Fernando”. (PINA, [15–] 1901, p. 124-125)
Acordados os termos da rendição, no dia 19 de Outubro o palanque foi deslocado para junto da praia e o arraial finalmente estendido até ao mar. “Por ordem do Infante D. Henrique, os soldados começam a embarcar, ficando somente aqueles que protegeram o atalho que dava para o palanque. Quem ficou responsável por este combate defensivo foi o capitão Álvaro Vaz de Almada e o marechal da expedição. Juntamente com eles foram uma copia de besteiros”. (MOREIRA, 2009, p. 83)
Porta da Casbah de Tânger
Uma situação interessante e que merece ser referida é que após o acordo de rendição, Sala ben Sala permitiu que os portugueses fossem evacuados pela couraça da muralha, através do Albacar da cidade, para os proteger da fúria das tropas enviadas pelo rei de Fez: “Quisera Çalla Bemçalla que o Infante com os cristãos, por mais sua segurança entrassem pelo albacar e embarcassem pela couraça, mostrando que assim convinha, porque não se podia resistir á contumácia dos Enxouvios, e o Infante por experimentar a verdade de sua tenção mandou pela mesma couraça levar aos navios alguns doentes” (PINA, [15–] 1901, p. 126).
No entanto, o embarque das tropas foi conturbado porque “muitos portugueses cobraram dinheiro aos outros soldados para que estes pudessem entrar nos navios” (MOREIRA, 2009, p. 83), e alguns mouros atacaram os portugueses que embarcavam, por transportarem consigo as suas armas, o que motivou momentos de pânico, com soldados portugueses a atirarem-se à água para tentar chegar aos navios. No Domingo dia 20 de Outubro todos os soldados tinham sido resgatados.
O Baluarte do Caranguejo em Tânger
Sobre a crónica de Rui de Pina:
Não se sabe ao certo quantos portugueses morreram dos 6.000 de foram a Tânger, mas Rui de Pina fala de 500 mortos (PINA, [15–] 1901, p. 130). Já Frei João Álvares refere que os portugueses que se refugiaram no palanque eram apenas 3.000 (ALVARES, 1730, p. 62), o que significa que cerca de outros 3.000 teriam sido mortos, desertado ou retirados feridos durante a batalha. Os números em relação aos combatentes marroquinos é exageradíssimo, referindo-se que para além dos 7.600 defensores da cidade terão chegado como reforços 10.000 cavaleiros e 90.000 peões a 30 de Setembro e 60.000 de cavalo e 700.000 homens de pé no dia 8 de Outubro!
As referências ao arraial e ao palanque são confusas no texto de Rui de Pina, já que o autor emprega ambos os termos para descrever o assentamento português localizado no Marshan, que funcionou entre 13 de Setembro e 8 de Outubro, e que o cronista relaciona com os 25 dias que os portugueses cercaram Tânger, e a estrutura de madeira montada no dia 6 de Outubro na praia, para onde se transfere o exército português no dia 9 e onde permanece até 20 de Outubro, e que Rui de Pina relaciona com os 12 dias que os portugueses estiveram cercados em Tânger.
Outro aspecto que merece uma referência prende-se com o carácter tendencioso da crónica, situação aliás habitual não só em Rui de Pina, que elogia de forma por vezes patética os feitos corajosos dos portugueses, por exemplo, colocando na boca dos próprios reis mouros que lhes deram batalha elogios rasgados à sua bravura e ao facto de resistirem a uma oposição esmagadora em termos de número de soldados, número esse que, como vimos, não é de todo credível.
A Praia de Tânger pintada por David Mynett
As últimas palavras vão para o infante D. Henrique, que é apresentado por Pina como o herói desta contenda, mas que se mostrou um estratega militar desastroso que insistiu na continuação da operação militar depois de já estar perdida, com evidentes custos desnecessários para os portugueses, facto que o próprio cronista admite. Para além disso, conseguiu salvar a sua pele deixando o seu irmão Fernando entregue à sua sorte, com a promessa de uma troca da sua liberdade por Ceuta, troca que sabia que nunca se iria realizar.
Como escreveu Peter Russel, “na época, porém, Henrique não se saiu com essa facilidade. Nas Cortes de Leiria foi culpabilizado pelo desastre de Tânger e pelas esperanças que deu a D. Fernando em relação ao seu resgate. A oposição de Henrique ao cumprimento do tratado era também bem conhecida. O papel dúbio de Henrique na crise da regência de 1438 e na batalha de Alfarrobeira em 1439 fomentou na época em Portugal um sentimento popular significativo, segundo o qual Henrique era uma espécie de traidor da dinastia. Tinha atraiçoado os seus irmãos por interesses pessoais, sendo Tânger e os acontecimentos subsequentes exemplos disso.” (RUSSEL, 2000, obra citada)
Olá!
O que aconteceu ao filho de “Çalla Bemçalla”?
Agradeço muito a sua resposta, ou mesmo indicações de bibliografia.
Muito obrigada, maria cecília cameira
Olá. Refere-se ao filho de Salá ben Salá ou ao filho de Mulei Xeque?
Olá, bom dia!
refiro-me à informação do Rui de Pina
“Que os mouros deixassem ir e embarcar livremente nos navios todos os cristãos com seus vestidos somente, e a eles ficasse o arraial com armas, cavalos e artilharias, e todas as outras coisas, e mais lhe fosse entregue a cidade de Ceuta com todos os mouros cativos que nela estivessem, e que ficassem em paz, a qual se obrigou o Infante que El-Rei desse por mar e por terra a toda a Berberia por cem anos; e para segurança dos cristãos, e que sem contradição os deixariam ir, deu Çalla Bemçalla um seu filho em poder do Infante, e pelo dito filho de Çalla Bemçalla ficaram reféns Pedro de Ataíde e João Gomes do Avelar, e Aires da Cunha, e Gomes da Cunha; e para segurança dos mouros, que Ceuta com os cativos lhe seriam entregues, se deu por refém em seu poder o Infante D. Fernando.” (PINA, [15–] 1901, p. 124-125)
muito obrigada maria cecília
Sinceramente não sei. Não conheço nenhuma referência posterior a essa. Cumprimentos
Muito obrigada!
O destino da criança, se é que era uma criança, despertou-me curiosidade.
Boa noite, Maria
Aquando da expedição de D. Fernando de Castro, em Abril de 1441, ainda o filho de Salah Ben Salah se encontrava em Portugal. A sua situação serviu — também — de pretexto para divergências entre as delegações que negociaram o resgate do infante D. Fernando.
Durante a saga portuguesa em África, muitos foram os casos parecidos com este. Com o tempo, os envolvidos tornavam-se “apátridas”, indesejados pelos seus, não reconhecidos como “nossos”. Recordo que Boabdil era chamado de “Príncipe dos Cristãos” quando voltou a África no início do século XVI.
Em 1441 Salah Ben Salah morrera já, e governava ambas, Tânger e Arzila, um seu irmão, em nome do mencionado filho. Sabemos que Salah fora alcaide de Ceuta em 1415, ao tempo da conquista portuguesa. Na fuga levou consigo “mulher e filhos”. É possível que o cativo não fosse exactamente um menino em 1437.