6 comments on “A tragédia do Infante Santo

    • Sem dúvida. No entanto, parece-me que um trabalho sobre a iconografia do Infante Santo não se reduz aos painéis de S. Vicente. Existem outras imagens que não podem deixar de ser referidas, como as “Actas Sanctorum” de 1695 ou o Tríptico do Infante Santo existente no Museu Nacional de Arte Antiga. Agradeço a sugestão, que poderá vir a enriquecer este artigo. É a vantagem dos trabalhos não impressos, que podem ser actualizados e melhorados. Mais uma vez obrigado

      • Caro Frederico Mendes Paula, permita-me alguns comentários:

        Contra a identificação do Infante Santo nos Painéis tem sido argumentada a discordância entre o rosto seráfico da sua figura resplandecente naquela pintura e o rosto com barbas do homem agrilhoado que se tornou a norma iconográfica posterior para aquele príncipe de Avis.

        É verosímil que o testemunho de Frei João Álvares possa ter contribuído para estabelecer uma iconografia do Infante Santo representado como um cativo agrilhoado e barbado. É conhecida a importância do antigo secretário, companheiro e cronista do cativeiro marroquino na tentativa de difundir o culto do infante D. Fernando durante a segunda metade do século XV.

        Assim, numa imagem que consta no folio C do códice do Vaticano intitulado Martyrium et Gesta Infantis Domini Fernandi (Cod. Vat. Lat. 3634), códice datável do terceiro quartel do século XV, aquele príncipe é representado com longas barbas e grilhetas.

        No tríptico que se pensa ter sido destinado à sua capela mortuária no Mosteiro da Batalha, a representação de D. Fernando é semelhante à do códice do Vaticano. Aquela pintura tem sido datada do terceiro quartel da centúria de Quatrocentos.

        Se Nuno Gonçalves quis representar D. Fernando transfigurado e em glória, já o seu modesto colega de ofício preferiu acentuar na Batalha os padecimentos terrenos do cativo de Fez. Não teria sentido comparar duas pinturas de valor tão desigual, se não fosse para reconhecer que, de facto, a tradição iconográfica do tríptico da Batalha se impôs posteriormente.

        Com efeito, também segue a iconografia daquele tríptico a figura do Infante Santo que está à esquerda no portal ocidental do Mosteiro dos Jerónimos. Altamente significativo é o facto de que a referida imagem faz contraponto a S. Vicente, este último representado em posição simétrica, à direita no mesmo portal, com o seu habitual atributo da nau.

        Apesar de onze séculos separarem o martírio de S. Vicente, em Saragoça, da morte do infante D. Fernando, em Fez, a chegada das relíquias de cada um deles a Lisboa, após terem estado retidas em terra de mouros  refira-se que o Algarve era uma província mourisca no tempo de D. Afonso Henriques  constituíra o desígnio dos habitantes da Lisboa do século XII e XV, respetivamente. Assim, é natural que os portugueses de Quatrocentos e de Quinhentos estabelecessem um paralelo entre os cultos de S. Vicente e do Infante Santo.

        Para além de tal poder justificar as duas figurações simétricas no portal poente dos Jerónimos, esse paralelismo poderia ter já levado Nuno Gonçalves a pintar o mártir S. Vicente no retábulo da Sé Catedral de Lisboa, circa 1470 [Martírios de S. Vicente, MNAA], com traços que inegavelmente recordam o rosto do infante D. Fernando figurado no políptico destinado à Câmara de Lisboa, em 1445 [Painéis de S. Vicente de Fora, MNAA]. Apesar do oval do rosto e das sobrancelhas da figura aureolada dos Painéis de S. Vicente de Fora não coincidirem com os de S. Vicente nos Martírios, a semelhança das fisionomias é visível. Na verdade, não constituiu caso único em pintura antiga representar figuras canonizadas com os traços de elementos de famílias reais europeias.
        Já do século XVII, a gravura que representa a paixão do Infante Santo, constante do primeiro volume do Acta Sanctorum, publicado pelo jesuíta Papebroeck, segue ainda a iconografia do tríptico da Batalha.

        O reconhecimento de que a iconografia do Infante Santo se afastou posteriormente da figura aureolada do Políptico de Nuno Gonçalves não constitui qualquer óbice à interpretação fernandina desta pintura. A melhor prova de que a iconografia de um príncipe de Avis poderia já não ser uniforme algumas décadas após a sua morte é dada pela estátua do portal sul do Mosteiro dos Jerónimos (circa 1520), que representa o infante D. Henrique com longas barbas – uma efígie bem distinta da do homem de chapeirão no Painel do Infante. Até à divulgação do Códice de Zurara pertencente à Biblioteca Nacional de Paris, cerca de 1840, era aquela a norma portuguesa e europeia para representar Henrique, o Navegador.

        Regressando ao período imediato à morte de D. Fernando, considere-se o seguinte argumento, simultaneamente de ordem estética e emocional. Em todos os tempos e em todas as civilizações houve a preocupação de preparar condignamente o corpo para a sepultura, lavando-o, purificando-o, incensando-o e cobrindo-o com as melhores vestes. Certamente, o infante mártir não seria inumado como um andrajoso barbado. As seguintes linhas de Rui de Pina são elucidativas quanto à inaceitabilidade de tal prática:

        […] poucas óras ante de seu fallecimento [D. João I, em 1433], sendo jaa em podêr de Religiosos e outros Ministros de sua concientia, poendo por caso suas maaõs em sua barba Real, por que a achou alguu tanto crecida, a mandou logo fazer, dizendo, que nom convinha a Rey, que muitos aviam de vêr, ficar despois de morto espantoso e disforme.

        Assim, não resulta surpreendente que D. Fernando seja representado nos Painéis de forma condigna, como convinha a um príncipe de Avis prestes a ser inumado pelos seus familiares.

        Cordialmente,

        Jorge Filipe de Almeida

        • Caro Jorge Filipe de Almeida
          Lendo o seu interessantíssimo comentário vejo que pouco ou nada sei sobre este assunto e prometo que aproveitarei as referências que faz para aprender algo que, conforme lhe disse na minha primeira resposta, possa contribuir para enriquecer o meu artigo.
          Mais uma vez obrigado e até sempre
          Cumprimentos

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