As Muralhas Reais de Ceuta
“A tomada de Ceuta, em 1415, marcou, não só o início da expansão ultramarina, mas também o ponto de viragem na política de degredo. Isso porque a conquista de Ceuta assinala o início do degredo colonial. Com ela, os portugueses davam início a uma prática que iria perdurar por cerca de 5 séculos: o envio de condenados para as franjas do império.” (TOMA, 2004, pág. 5)
Não é por acaso que Ceuta é apelidada frequentemente nos textos da época como o “presídio de Ceuta”. Ocupada essencialmente por militares, corsários e condenados, esvaziada da sua população nativa, privada de actividades comerciais e dependente de abastecimentos exteriores, a vida na cidade não se estruturava como numa comunidade urbana tradicional, com a agravante de se encontrar isolada do território rural circundante.
As Muralhas Reais de Ceuta e o Fosso Navegável
A prática do degredo, termo derivado do Latim “decretum”, entendida como a “expulsão penal” ou o afastamento do criminoso do local onde cometeu o crime, já era corrente em Portugal antes da conquista de Ceuta, e sob duas formas _ o degredo territorial, cumprido nas regiões mais recônditas do país, geralmente no Algarve, e o degrado nas galés, para crimes mais graves, que implicava um grande sofrimento físico do condenado, colocado numa situação de extrema precaridade, e correspondia na prática, na grande maioria dos casos, a uma pena de morte.
A pena do degredo trazia para o estado inúmeras vantagens. Permitia a condenação de grande número de pessoas sem o problema da sua logística, evitando as despesas relacionadas com o funcionamento das prisões, afastava o condenado do local do crime e da sociedade e satisfazia as necessidades de povoamento e mão-de-obra de determinadas regiões. Para além disso a pena era cumprida em relativa liberdade e o condenado podia exercer funções remuneradas, facilitando a sua reintegração e eventualmente a sua fixação definitiva no local do degredo. Para o condenado, era sobretudo uma forma de expiar o seu crime num curto espaço de tempo.
Desenho da cidade e fortaleza de Ceuta de 1643. Autor desconhecido, Arquivo General de Simancas
Os crimes punidos com o degredo eram crimes de pequena e média gravidade, já que a legislação da época, concretamente as Ordenações Afonsinas, previa penas muito duras para a generalidade dos crimes de maior gravidade, como a pena de morte na fogueira ou por enforcamento, “as penas atrozes”, como suplícios vários, incluindo o corte dos membros e da língua, a marca de ferro ardente, os açoites na via pública, para além é claro da pena de prisão régia.
As penas de degredo variavam entre três, cinco e dez anos. Os crimes punidos com o degredo eram por exemplo os crimes de “lesa-majestade” de segunda cabeça, relacionados com a quebra de segurança real, a causa de morte de reféns ou condenados, a traição, a conivência na fuga de prisioneiros, as ofensas a oficiais de justiça, o desrespeito pelas sentenças dos tribunais e os crimes de falsificação de moeda; eram também o caso dos crimes “contra o património”, como a causa de dano para proveito próprio, a destruição de cercas, a alteração da posição de marcos, o trespasse de habitação particular, a utilização de falsas medidas e falsos pesos, o jogo com dados falsos, o suborno e a venda de material proibido; eram os crimes “contra a pessoa, sua honra e reputação”, como a injúria e o insulto; eram os crimes “contra a moralidade”, como “dormir com moça virgem ou viúva honesta”, o adultério por parte da mulher, desde que perdoado pelo marido, possuir uma “barregã ou concubina”, ser amante de clérigo, as relações com parentes e a rufiagem, “ou prática de sedução de mulheres retiradas da sua família em concubinagens, hospedando-as em albergues para dormir publicamente com homens de passagem e tendo o alcoviteiro todo o dinheiro que elas ganham no dito pecado”. (PIERONI, 2001, obra citada)
Surgem assim identificados nos textos como degredados para Ceuta muitos “rufiões, prostitutas, concubinas, barregãs, mariolas, vilãos, alcoviteiros, insultadores, falsificadores” e outros que tais.
Desembarque de degredados no Brasil
Os degredados tiveram um papel muito importante no contexto da colonização portuguesa do mundo, já que eram colocados em locais que pertenciam ao Reino e onde havia demanda de mão-de-obra, “transformando aquilo que seria um ónus para o Estado em ganho”. (TOMA, 2004, pág. 4)
Se inicialmente os degredados eram desterrados para as praças de Marrocos, numa perspectiva de ostracizar os criminosos da sociedade e colocá-los num “presídio”, com o evoluir dos Descobrimentos Portugueses passaram a ter um papel de colonizadores e de garante da presença de Portugal nas colónias.
A essas pessoas eram atribuídas as tarefas mais difíceis e perigosas. Eram os primeiros a desembarcar nas terras onde os navios acostavam, testando a eventual hostilidade dos habitantes locais e ficando encarregues de com eles estabelecer relações de confiança e recolher informações. Frequentemente eram deixados à sua sorte em praias desconhecidas, estabelecendo bases onde os navios da coroa portuguesa faziam aguada e eram abastecidos. Muitos tornavam-se exploradores famosos, outros rebelavam-se e criavam comunidades de “foras da lei”, outros ainda integravam-se nas sociedades nativas, renegando o seu passado e adoptando os seus costumes.
Indios Carijó. autor desconhecido
Alguns ficaram célebres, como Bacharel da Cananeia, um cristão-novo abandonado numa praia no Sul do Brasil, que se tornou chefe dos índios Carijó, liderando um ataque para destruir a colónia portuguesa de S. Vicente, ou Zé do Telhado, conhecido como o “Robim dos Bosques Português”, que degredado em Angola roubava os ricos para dar aos pobres.
As necessidades de mão-de-obra nas colónias, muito particularmente no Brasil, generalizou a prática do degredo, abrindo o seu leque a muitos portugueses indesejados, acusados de crimes de forma gratuita. Nessa perspectiva é falsa a ideia de que os degredados eram simples criminosos, como inclusivamente se pode atestar nos próprios textos das sentenças de degredo proferidas, como este é um exemplo: “Vá degredado ao Brasil, onde se tornará rico e honrado” (SALVADOR, 1918, obra citada). O facto de muitos dos degredados serem apoiados pelo Estado com a entrega de terras e de utensílios e ferramentas, tornou o degredo, em muitas situações, numa espécie de transformação forçada de cidadãos em colonos.
“Foram o advento do capitalismo e a expansão ultramarina seguida do afã colonizador que conferiram especificidade à pena de degredo. Determinada, sobretudo, pela necessidade utilitarista de transformar aquilo que até então era visto como um ónus social em capital humano a ser empregado a serviço do Estado, a prática do degredo mostrou-se plenamente de acordo com as teorias mercantilistas da época. É sob essa perspectiva de aproveitamento dos condenados e de toda a sorte de indesejados é que o degredo irá se disseminar pelos Estados europeus.” (TOMA, 2004, pág. 5)
Bibliografia:
PIERONI, Geraldo. “Banidos para o Brasil. A Pena do Degredo nas Ordenações do Reino”. Justiça e História, Centro de Memória do Judiciário. 2001
SALVADOR, Frei Vicente. “História do Brasil de 1627”. Weiszflog Irmãos. S. Paulo e Rio, 1918
TOMA, Maristela. “O Degredo no Contexto do Império Português”. ANPUH/SP-UNICAMP, 2004
WIKIPEDIA. “Degredado”. http://pt.wikipedia.org/wiki/Degredado